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André Rocha

Enfim voltamos a ter um meio-campista, o oito e o "oito": Renato Augusto

André Rocha

14/11/2016 08h52

Renato Augusto

Renato Augusto costuma dizer que gosta de ler ou ouvir em alguns veículos que é volante e em outros um meia. Nas Olimpíadas atuou com a camisa cinco e chegou mesmo a jogar mais fixo, compensando as descidas constantes de Walace no ofensivo 4-2-3-1, quase um 4-2-4, montado por Rogério Micale.

Na vitória sobre a Argentina no Mineirão foi mais meia a partir da troca com Paulinho e chegou a atacar o espaço deixado pela movimentação de Philippe Coutinho da ponta direita para dentro, como na jogada do gol de Paulinho, o terceiro da equipe de Tite.

Versatilidade, inteligência tática. Capacidade de recuar para buscar a bola com os defensores e iniciar a organização, mas também entrar na área para finalizar, quando necessário. Volante e meia.

Meio-campista que joga de área a área, com essência mais organizadora e criativa que vinha fazendo falta por aqui em tempos de Kroos, Modric, Iniesta, Pogba, Vidal, Verratti, Gundogan e, há pouco tempo, dos mestres Xavi e Pirlo.

Aos 28 anos, o camisa oito da seleção não chega ao nível de excelência dos melhores do mundo, até por questões físicas que o tiraram da Europa no que seria o seu auge. Mas já é um alento.

A grande questão é:por que ao longo do tempo os jogadores com essas características foram sumindo de nossos campos. Para entender melhor é preciso voltar quase sete décadas.

Nos tempos do 2-3-5, do WM ou da "diagonal" de Flávio Costa no Brasil do "Maracanazo" em 1950, os meias dividiam as funções de criação e finalização. Como Zizinho e Jair da Rosa Pinto, embora o primeiro, ídolo de Pelé, fosse mais vertical e o segundo tivesse como características os lançamentos. Mas jogavam praticamente alinhados.

A Hungria em 1954 ensaiou a linha de quatro na defesa que o Brasil consolidaria em 1958. Com quatro na defesa, o meio ficava um tanto esvaziado com apenas dois jogadores. O "Escrete Húngaro" recuava Hidegkuti como "falso nove" para liberar os ofensivos Kocsis e Puskas. No Brasil, com Vicente Feola influenciado por Bela Guttman, a solução foi recuar um ponteiro.

Zagallo ganhou notoriedade por executar a função pela esquerda no bicampeonato mundial em 1958 e 1962. Mas Telê Santana também era "falso ponta", só que pela direita, no Fluminense. Com isso um meio-campista passava a ser mais articulador, próximo ao volante, e outro praticamente um atacante fazendo parceria com o centroavante.

Não é raro vermos escalações da lendária seleção com Zito, Didi e Zagallo; Garrincha, Vavá e Pelé. O mesmo vinte anos depois, com o Velho Lobo já treinador adaptando Rivellino como falso ponteiro: Clodoaldo, Gerson e Rivellino; Jairzinho, Tostão e Pelé.

Assim nasceram as figuras do "meia-armador" e do "ponta-de-lança". E uma confusão histórica muito comum: em muitos times o camisa dez era o armador e o oito atuava mais avançado. Exemplo clássico: Ademir da Guia no Palmeiras da Academia era mais próximo de Dudu e Leivinha praticamente um quarto atacante.

Já Pita, o dez, era o mais avançado e Aílton Lira, camisa oito, o armador na primeira versão dos "Meninos da Vila" no Santos em 1978. Pita que, ainda com o mesmo número, recuaria para liberar Silas, o oito nos "Menudos" do São Paulo em 1985.

Nos anos 1960, o primeiro quadrado no meio-campo com o Cruzeiro de Piazza, Zé Carlos, Dirceu Lopes e Tostão. A Inglaterra campeã mundial em 1966 dera a senha para o 4-4-2 com Ball e Peters sendo os "dois Zagallos" de Alf Ramsey.

Ao longo do tempo o falso ponta foi sendo incorporado ao meio-campo. Na prática, os times jogavam com um losango – o ponteiro se juntando ao meia-armador e liberando o ponta de lança – ou num quadrado, com o ponta e o meia mais adiantado alinhados. Nas Copas de 1974 e 1978, o ponta esquerda que preenchia o meio era Dirceu.

Quando o Flamengo de Zico liberou os laterais Leandro e Junior para o apoio, a primeira solução foi transformar os pontas em meias: Tita e Lico. No final da era vitoriosa surgiu a necessidade de escalar dois volantes – Andrade e Vítor e, no título brasileiro de 1983, Vítor e Elder. Também para aproveitar o potencial ofensivo do meia Adílio.

Com a derrota brasileira em 1982 com Cerezo, Falcão, Sócrates e Zico, criou-se o dogma de que volantes eram necessários para dar liberdade aos laterais cada vez mais ofensivos, até pela obrigação de aproveitar os corredores com a extinção dos típicos ponteiros.

Vale a lembrança de que Cerezo jogava à frente de Chicão no Atlético Mineiro e Falcão, Sócrates e Zico eram os pontas-de-lança em seus clubes – Roma, Corinthians e Flamengo. Nenhum dos quatro era volante.

O 4-2-2-2 se consolidaria nos anos 1990 com a divisão de funções no meio-campo: o primeiro volante "cão de guarda", protetor da defesa; o segundo volante que marcava, porém tinha um pouco mais de liberdade caso os dois laterais não fossem alas. Dois meias: um mais cerebral, outro mais finalizador e criativo. Ambos, porém, sem muitas atribuições defensivas.

O São Paulo campeão mundial de 1992, com Pintado, Cerezo, Palhinha e Raí e o Palmeiras de 1996, com Amaral, Flávio Conceição, Djalminha e Rivaldo. Volantes e meias. Dois trabalhavam mais da intermediária para trás, dois da intermediária para frente. Os que jogavam de área a área sumiram.

Foram retomando com os volantes de saída no 4-2-3-1, como Elias e Paulinho, o Ganso num meio termo entre a organização e a infiltração na área, mas com a lentidão que Jorge Sampaoli vai tentando transformar em dinamismo no Sevilla.

Até chegar ao 4-1-4-1. Primeiro com Abel no Internacional de 2014, com D'Alessandro e Aranguiz alternando como ponta e meia pela direita e o mesmo com Alex e Alan Patrick do lado oposto.

Depois Tite voltaria do ano sabático em 2015 e, no mesmo desenho, avançou Elias e encaixou um Renato Augusto mais preparado fisicamente para a função de armador. Funcionou tão bem que dividiu com Jadson o protagonismo e os prêmios de melhor jogador do Brasileiro.

É ele quem dá ritmo e facilita todo o plano de jogo de Tite na seleção. Marca, passa curto ou longo, finaliza. Dita o ritmo, acelerando e desacelerando. Temporiza o jogo. Não é gênio nem protagonista, mas facilita o trabalho de toda a equipe. Por isso a insistência nas convocações e escalações, mesmo jogando no ainda pouco competitivo futebol chinês.

Três décadas depois, voltamos a contar com este jogador. Que Renato Augusto seja o "oito", norte e referência para que outros surjam e o futebol brasileiro fique em definitivo alinhado ao que de mais atual existe na prática do esporte no seu mais alto nível.

Sobre o Autor

André Rocha é jornalista, carioca e blogueiro do UOL. Trabalhou também para Globoesporte.com, Lance, ESPN Brasil, Esporte Interativo e Editora Grande Área. Coautor dos livros “1981” e “É Tetra”. Acredita que futebol é mais que um jogo, mas o que acontece no campo é o que pauta todo o resto. Entender de tática e estratégia é (ou deveria ser) premissa, e não a diferença, para qualquer um que trabalha com o esporte. Contato: anunesrocha@gmail.com

Sobre o Blog

O blog se propõe a trazer análises e informações sobre futebol brasileiro e internacional, com enfoque na essência do jogo, mas também abrindo o leque para todas as abordagens possíveis sobre o esporte.