Futebol "líquido" e calendário inchado. Esta conta não vai fechar
A proposta deste post é cruzar informações para provocar a reflexão.
Está no ótimo blog FastFut, de Celso Miranda, o protesto de Pep Guardiola contra a proposta de Gianni Infantino de aumentar de 32 para 48 o número de seleções na disputa da Copa do Mundo e a confirmação da UEFA, inclusive com divulgação do regulamento, da Liga das Nações: competição envolvendo 55 seleções europeias a ser disputada de quatro em quatro anos a partir de 2018.
E ainda podemos ter a ampliação do Mundial Interclubes para 16 ou 32 times. Sem contar a prática cada vez mais habitual dos clubes de levar os jogadores para períodos de pré-temporada com amistosos e torneios para cumprir os compromissos comerciais de clubes globais.
Com isso, podemos ter as principais estrelas do futebol mundial entrando em campo, dependendo do desempenho de seus clubes e seleções, mais de 80 partidas em uma temporada.
É legítimo pensar que profissionais que faturam milhões e vivem essa rotina por no máximo vinte anos têm mais é que trabalhar muito mesmo. Mas há algo acontecendo em paralelo dentro de campo que será um fator complicador.
Quem traz a ideia à tona é Marti Perarnau, catalão que escreveu "Guardiola Confidencial" e agora lança "Pep Guardiola – La Metamorfosis".
Segundo a visão do jornalista, corroborada por Paco Seirul lo, ex-preparador físico do Barcelona e agora responsável pela metodologia de treinamento do clube, o Barcelona não seria um time sólido, mas "líquido".
As aspas estão na coluna de André Kfouri para a Editora Grande Área: "Os líquidos são menos vulneráveis do que os sólidos. Do sólido, pode-se conhecer tudo, inclusive seus pontos débeis. Você golpeia um ponto débil e o quebra. O líquido, não". Leia o texto completo AQUI.
Líquido tem a ver com fluidez. E para fluir no futebol atual precisa ser jogado de memória, com movimentos mecanizados e numa velocidade cada vez maior. Um jogo mais rápido através de passes e deslocamentos. Sem a bola, reação imediata: "perde e pressiona". A resposta cada vez mais rápida e intensa.
Esse futebol "líquido", alucinante já se vê na Premier League e na Bundesliga com o Liverpool de Jurgen Klopp, o Borussia Dortmund de Thomas Tuchel, o Chelsea de Antonio Conte, o surpreendente Leipzig e outros.
O ponto não está na quilometragem percorrida pelos atletas. Não deve ultrapassar os 15 quilômetros por partida. A complexidade é aumentar exponencialmente as ações de alta intensidade. Ou seja, os sprints, a explosão da mudança de comportamento no momento com a bola e, logo após a perda, o pique para abafar a saída do adversário. Também a movimentação, a mudança de direção para fugir da marcação, entre outras.
No último parágrafo, Kfouri aborda a preparação física: "Além dos conceitos avançados e de sua aplicação em treinamentos que devem acompanhar a necessidade de novos objetivos, uma das fronteiras do jogo do futuro é a questão física. O nível de exigência para que jogadores sejam capazes de "liquidificar" times é brutal. Talvez seja por isso que técnicos como Guardiola, Klopp, Tuchel e Antonio Conte sejam obsessivos com a preparação nutricional e o descanso de seus atletas. O futebol líquido exigirá máquinas para processá-lo".
Descanso. Preocupação dos técnicos com a QUALIDADE do jogo que vai de encontro aos interesses das federações que fazem política e querem aumentar a QUANTIDADE de partidas.
Por isso o protesto de Guardiola, que também quer o seu Manchester City com fluidez no jogo. Para fluir precisa treinar e memorizar. Exercício também mental. Mas como, sendo obrigado a viajar e dividir ainda mais a atenção com as seleções envolvidas em mais competições?
Tudo isso temperado com pressão cada vez maior por resultados. Jogadores milionários e midiáticos não devem ser mimados nem tratados como vítimas. Só que a exigência está desproporcional.
Porque com a evolução do esporte no mais alto nível não há mais a menor chance de usarmos aquela tese de mesa de bar: "Amadores jogam seis peladas por semana e não se cansam". O futebol "líquido" já está aumentando exponencialmente a distância competitiva entre jogos e brincadeiras entre amigos.
Ou seja, esta conta não vai fechar. Guardiola sugere o aumento do número de substituições para rodar o elenco. Ajudaria, mas não parece o suficiente.
Como será o amanhã? Com clubes se rebelando contra FIFA e UEFA a ponto de partir para a desfiliação, organizando as próprias competições e negociando com mais autonomia a cessão de seus jogadores para as seleções? Difícil prever.
A única certeza é que o cenário que se apresenta com mais jogos cada vez mais intensos fica nebuloso para atletas e, consequentemente, para o espetáculo em si, que precisa de bilheteria e grana da TV. Se jogadores já se arrastam nas disputas de Copa do Mundo, Copa América e Eurocopa logo depois das temporadas europeias, a tendência é piorar.
Porque jogadores não são máquinas. Voltando ao FastFut, palavras de Guardiola: "Os jogadores não descansam e vivem constantemente sobre pressão, ninguém pode ser saudável e ter um bom desempenho dessa forma."
Será preciso alguém morrer em campo para que eles enfim sejam a prioridade como protagonistas e não engravatados no conforto de suas salas com ar condicionado? Tomara que não.
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