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André Rocha

Todo feito da Chapecoense carregará 70 asteriscos

André Rocha

04/12/2017 03h38

Melhor campanha do returno do Brasileiro e classificação para a fase preliminar da Libertadores. Em qualquer tempo, o feito seria histórico para um clube como a Chapecoense, sem o apelo popular e os recursos financeiros dos grandes times dos principais centros do país.

Um ano depois de perder praticamente todo o elenco, comissão técnica e direção torna tudo ainda mais grandioso, épico, inesquecível. Cinematográfico – e é mais que provável que essa saga chegue aos cinemas e seja lembrada para sempre.

Méritos da nova diretoria, de Gilson Kleina e comissão. Principalmente dos atletas, que se reuniram em janeiro e tiveram que construir uma história praticamente do zero, sem uma base para sustentar. Campeão estadual, campanha digna na Libertadores interrompida por uma questão extracampo, mas vencendo o vice-campeão Lanús na Argentina pelos mesmos 2 a 1 que deram o título continental ao Grêmio. Fez o que pôde na Recopa Sul-Americana, na Copa do Brasil e na Sul-Americana.

A Chape acertou ao não aceitar ser tratada como "café com leite", protegida do rebaixamento em 2017. Foi competitiva ao longo do ano e volta à Libertadores desta vez sem precisar da compaixão de ninguém, mesmo a mais que louvável do Atlético Nacional que cedeu o título da Sul-Americana.

As imagens da comemoração são tocantes, especialmente quando mostram os sobreviventes Jackson Follmann, Alan Ruschel e Neto celebrando o milagre da vida. De fato emocionam.

Mas pelo menos para este que escreve é difícil permitir que se escape uma lágrima pelos vitoriosos de hoje sem chorar antes pelos que se foram há pouco mais de um ano. Setenta vítimas de um assassinato em massa cometido por um piloto suicida, por pura ganância. Impossível não lamentar por seus destinos e de seus familiares.

Sim, é uma questão delicada, de difícil análise. Pois sempre ficará a pergunta: qual a indenização justa para os que perderam seus entes queridos, a grande maioria deles como maior fonte do sustento da família?

Só há dois olhares possíveis: do clube e seus responsáveis, que precisavam seguir em frente, fazer escolhas e estabelecer prioridades para continuar existindo num cenário complicado e inédito. Se a Chapecoense priorizasse o pagamento de indenizações no melhor cenário para as famílias – o que cada vítima receberia em sua vida profissional com valores corrigidos e mais um adicional pelo acidente em si – teria que vender todo seu patrimônio, incluindo a Arena Condá, e fechar as portas. E mesmo assim não conseguiria arcar com os custos.

Já o dos familiares é de quem possui o direito de ser compensado por nunca mais poderem olhar nos olhos dos que amavam. Os sonhos desfeitos e as ausências não têm preço. Mas a vida precisa continuar e é muito injusto que o padrão de vida tenha que se adequar a uma realidade construída pela destruição que partiu de uma empresa aérea irresponsável e amadora e um clube que aceitou os serviços desta. Uma tragédia que podia ter sido evitada. Não foi acidente.

O ano mostrou a Chapecoense rodando a Europa. Em Barcelona conhecendo Messi, visitando o Papa Francisco em Roma, ganhando o carinho do planeta. Com exceção de Ruschel, Neto e Follmann, nenhum deles tinha relação direta com o ocorrido. Desfrutaram por consequência. Os mortos e seus parentes ficaram com a pior parte do "bolo". É difícil digerir.

Pelo contexto, há responsabilidade até pelos profissionais de imprensa que perderam suas vidas. Afinal, a logística da viagem para fazer a cobertura da final da Sul-Americana era complexa e o mais lógico a fazer era mesmo acompanhar a delegação. Tudo muito duro de aceitar, por mais que se entenda a posição de um clube com pouco mais de 40 anos de existência e que talvez nem estivesse pronto para tomar decisões tão importantes.

Por mais que tenhamos consciência de que vivemos em um mundo repleto de dores e injustiças e a trajetória de cada um deve seguir apesar disso, não há como colocar um sorriso completo no rosto quando a Chapecoense vence e reescreve sua história.

Porque todo feito do clube carregará sempre 70 asteriscos.

Sobre o Autor

André Rocha é jornalista, carioca e blogueiro do UOL. Trabalhou também para Globoesporte.com, Lance, ESPN Brasil, Esporte Interativo e Editora Grande Área. Coautor dos livros “1981” e “É Tetra”. Acredita que futebol é mais que um jogo, mas o que acontece no campo é o que pauta todo o resto. Entender de tática e estratégia é (ou deveria ser) premissa, e não a diferença, para qualquer um que trabalha com o esporte. Contato: anunesrocha@gmail.com

Sobre o Blog

O blog se propõe a trazer análises e informações sobre futebol brasileiro e internacional, com enfoque na essência do jogo, mas também abrindo o leque para todas as abordagens possíveis sobre o esporte.