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André Rocha

"Ditadura da emoção" estraga primeiro Corinthians x Palmeiras decisivo

André Rocha

01/04/2018 01h06

Foto: Paulo Whitaker/Reuters

Corinthians e Palmeiras disputam o dérbi do maior centro futebolístico do país. São os últimos campeões brasileiros, terminaram na ponta da tabela na última edição da competição nacional mais importante da temporada. Ou seja, é o maior clássico brasileiro da atualidade. Para muitos a grande rivalidade do país.

Decidindo o Paulista, algo que não acontecia desde 1999. Século passado. Em dois jogos, um em cada arena. O Corinthians havia vencido os quatro últimos confrontos, apesar da maior capacidade de investimento do rival.

Ingredientes para tornar o primeiro confronto em Itaquera muito tenso. Até porque com mando de campo e torcida única a responsabilidade de construir o resultado em casa aumenta exponencialmente em relação aos duelos de antes no Morumbi com torcida dividida.

Mas nada justifica uma disputa de péssimo nível técnico, com 50 faltas cometidas – 22 pelo Corinthians e 28 pelo Palmeiras – e 12 cartões apresentados pelo árbitro Leandro Bizzio Marinho. Vermelhos para Felipe Melo e Clayson após uma confusão geral. A famosa "bulha".

Nada justifica, mas há um fenômeno que explica tamanha panela de pressão: a "ditadura da emoção".

É claro que todo clássico vale muito para o torcedor. É a chance da vitória que é a cereja do bolo. No caso do estadual, o duelo fica muito maior do que a conquista em si. Mas a cultura da guerra alimentada por torcedores, dirigentes, jogadores e até muitos jornalistas coloca tudo vários tons acima.

Os jogadores precisam ser guerreiros. Ganhar na bola e na porrada numa disputa que coloca quem é mais machão acima, bem acima de quem é melhor. Para o torcedor, quanto mais sofrido, mais gostoso. Espalham-se nos estádios as caras, bocas e lágrimas de algo que beira a histeria. E a loucura passa para o campo.

Ninguém tenta parar a bola e jogar. Até porque se não entrar no clima bélico pode ser acusado de ter amarelado, ser frouxo, não honrar a camisa. Então tudo se resume a entrar firme nas divididas, apelar para as faltas se perceber que vai perder a jogada, dar carrinho e se houver o desarme ou o perigo for afastado tem que vibrar, bater no peito para mostrar que tem coração e no braço para ressaltar que tem sangue nas veias.

E a cabeça? E pensar o jogo para vencê-lo? A emoção já está na atmosfera. Quem não se envolver em campo num clássico deste tamanho é melhor procurar outro ofício. A vontade de vencer é evidente, ainda mais no país que mede todos os agentes do futebol pelo "ganhou o quê?" Sem contar que a imprevisibilidade do jogo já o torna emocionante ao natural.

Não é preciso inflamar mais porque consome o raciocinio, embota a visão. O jogo fica feio, com chutões demais, ligações diretas porque ninguém quer arriscar um passe que pode dar errado e encontrar o vilão. O resultado prático são 90 minutos de tortura para quem joga, torce e assiste. Quem vence berra e chora. A dúvida é se é de alegria ou de alívio. Porque o jogo em si praticamente não existiu.

Pode ser Corinthians x Palmeiras, mas também Gre-Nal, Ba-Vi, Flamengo x Vasco, Cruzeiro x Atlético, Atle-Tiba. A "ditadura" está lá. Alimentada também pela TV, que fala em emoção o tempo todo e pouco sobre futebol. No slogan, na gritaria dos narradores cada vez mais exagerada, até forçada. Até cobrança de lateral é com o tom lá em cima.

Querem tudo à flor da pele e depois lamentam quando a violência explode no campo, nas arquibancadas ou nas ruas. Não é preciso falar "Matem-se!" Basta resgatar sempre que possível os símbolos da guerra que sempre foram utilizados no futebol. Só que a coisa passou do ponto há tempos. Mais uma vez estragou um jogo decisivo.

O gol de Borja no início da partida condicionou o jogo. Mas controle não houve. Inclusive, Roger Machado promoveu em sua equipe uma mudança na forma de se defender. Para evitar que a marcação por zona pura pudesse provocar uma passividade em seus jogadores, a maior crítica na derrota por 2 a 0 para o Corinthians na fase de grupos, o treinador estimulou seus comandados a fazer encaixes com perseguições mais longas. Mesmo tendo a bola ainda como referência. Tudo para não perder a intensidade. E também agradar a arquibancada. Ou, no caso de hoje, o palmeirense que viu pela TV.

Correria desenfreada, qualquer choque aumentando ainda mais a eletricidade. Há quem defenda essa postura e diga que clássico decisivo não é para jogar, mas vencer. Ainda mais para os que veem o esporte como o último refúgio para a barbárie e a imposição da virilidade através da truculência. Ou o templo da emoção. Sempre ela.

A grande pergunta que fica é onde o futebol, essência que se transforma em um mero detalhe, entra nessa equação? Em Itaquera ele pouco apareceu. Pior assim. Que no Allianz Parque seja melhor.

Sobre o Autor

André Rocha é jornalista, carioca e blogueiro do UOL. Trabalhou também para Globoesporte.com, Lance, ESPN Brasil, Esporte Interativo e Editora Grande Área. Coautor dos livros “1981” e “É Tetra”. Acredita que futebol é mais que um jogo, mas o que acontece no campo é o que pauta todo o resto. Entender de tática e estratégia é (ou deveria ser) premissa, e não a diferença, para qualquer um que trabalha com o esporte. Contato: anunesrocha@gmail.com

Sobre o Blog

O blog se propõe a trazer análises e informações sobre futebol brasileiro e internacional, com enfoque na essência do jogo, mas também abrindo o leque para todas as abordagens possíveis sobre o esporte.