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André Rocha

Carta a Paulo Cézar Lima: já pensou se houvesse um Caju para lhe avaliar?

André Rocha

14/07/2018 01h19

Foto: Arquivo/CBF

Sr. Paulo Cézar Lima,

O senhor certamente não me conhece. E uso da extrema formalidade na abertura da carta, sem usar o "Caju" que era apelido por conta de uma tintura de cabelo e foi anexado ao seu nome, porque sei que não gosta muito de jornalista. Como nunca chutei uma bola profissionalmente, o cuidado precisa ser maior ainda para lidar com o senhor.

Por isto relutei tanto em publicar este texto, que vem sendo guardado e atualizado há algum tempo. Já que acredita que só ex-profissionais da bola podem falar de futebol, que valor teria algo meu direcionado ao senhor? Resta a mim então pedir humildemente que reflita sobre o que alguém que lhe lê e ouve há muito tempo tem a dar de retorno sobre suas palavras e posicionamentos.

Acompanhei suas críticas à seleção de Tite em "O Globo". Muitas pertinentes, obviamente. Até porque nenhum trabalho é perfeito, nem mesmo os mais vencedores e consagrados. Lembra que em 1970 o goleiro Félix falhou no gol do Uruguai e a firula de Clodoaldo terminou no empate italiano no final do primeiro tempo da decisão no Estádio Azteca?

Pois é justamente o que incomoda há tempos este que escreve. O senhor só critica, aponta defeitos. Sistematicamente. De forma impiedosa até. Desde Lazaroni em 1990, quando me lembro de começar a acompanhar a sua visão sobre o futebol brasileiro, até agora. Lá atrás cheguei a concordar muitas vezes com suas teses de resgate da essência do nosso jogo e do pecado em copiar os europeus.

Meu avô dizia que o senhor era uma craque de bola. Confesso que me decepcionei um pouco com seu desempenho na única partida que lhe vi em ação ao vivo: o Mundial Interclubes de 1983 pelo Grêmio contra o Hamburgo em Tóquio. O Mário Sérgio teve que jogar por ele e pelo senhor. Mas tudo bem, foi apenas uma partida, teve a questão do entrosamento e era reta final da carreira, com 34 anos. Eu só tinha dez.

Só que veio a internet. Com ela a banda larga e a possibilidade de hospedar e, consequentemente, assistir a vídeos mais longos. Jogos na íntegra foram disponibilizados. Todos da Copa do Mundo de 1974. Com 25 anos, era para ter sido o seu Mundial. Sem Gerson e com Rivelino na sua real posição desta vez não teria concorrência. E Zagallo lhe deu ainda mais liberdade, já que era Dirceu quem fazia o "falso ponta" pela esquerda e o senhor podia jogar mais livre como o antigo "ponta de lança", se aproximando de Jairzinho, que jogou como centroavante e  Valdomiro do Internacional fazia a ponta direita.

Uma enorme decepção o futebol do que o senhor chama de "bons tempos", "Era de ouro". O mito não caiu, desabou. Entendo quando diz que o rendimento da seleção foi prejudicado pelo racha entre cariocas e paulistas, mas isto sempre aconteceu. E convenhamos que Zagallo sempre deu preferência aos cariocas. Tanto que mesmo com desempenho pífio da maioria em praticamente toda a campanha, Ademir da Guia só foi ter oportunidade na decisão do terceiro lugar, contra a Polônia. Também foi mal.

Por mais boa vontade que tivesse vendo os jogos foi impossível não me desapontar com seu rendimento. Nenhum gol, algumas jogadas individuais esporádicas. Quando o Brasil mais precisou do seu futebol ele não apareceu. Era aquele o estilo que o senhor exalta até hoje? Duas atuações enfadonhas contra Iugoslávia e Escócia – confesso que algumas vezes utilizei essas partidas para vencer a insônia – e o sufoco contra o Zaire para se classificar. Vitórias apertadas, mas até animadoras contra Alemanha Oriental e Argentina.

Para fechar com aquela vergonha contra a Holanda. A seleção tricampeã tentou intimidar os adversários com uma pancadaria lamentável. Liderados pelo esquentado Cruyff, os holandeses revidaram e o que vimos foi uma das páginas mais tristes da história das Copas. No segundo tempo, com os ânimos mais calmos e os europeus, com toda razão, respeitando menos a nossa tradição, a "Laranja Mecânica" passeou e fez 2 a 0 com tranquilidade para garantir vaga na grande decisão contra a anfitriã Alemanha.

A minha questão que propõe uma reflexão é simples: já pensou se houvesse um Caju naquela época avaliando o futebol da seleção e, particularmente, o seu? Consegue se imaginar sendo submetido à sua régua de exigência com todos que passaram pela seleção nos últimos anos?

Sim, o senhor foi vítima de racismo em um Brasil regido pela ditadura e com seu conservadorismo habitual. Naqueles tempos um negro bem sucedido incomodava muita gente mais do que hoje. E concordo que hoje a grande maioria dos jogadores de futebol é alienada. Também há muito a lamentar e protestar por não ter sido chamado por Cláudio Coutinho em 1978 – e desconfio que sua bronca com quem "nunca chutou uma bola" venha daí.

Mas nem tudo foi preconceito. O campeonato carioca de 1971 ficou marcado pelo gol polêmico de Lula, que deu o título ao Fluminense, depois do goleiro Ubirajara trombar com Marco Antônio. Mas também pela sua soberba de fazer embaixadas na frente dos rivais e, a partir daí, o Botafogo perder um campeonato ganho, no qual o senhor era o grande destaque e também artilheiro, com 11 gols. Imagine isto hoje, ainda que os estaduais tenham perdido seu valor ao longo dos anos. Tente vislumbrar o que um Paulo Cézar Lima diria do seu comportamento?

Aproveito para dizer que hoje o senhor se equivoca ao afirmar que atuar na Europa engessa o jogador brasileiro. Até foi assim há algum tempo. Mas agora treinadores como Pep Guardiola, Jurgen Klopp e até José Mourinho quando contratam brasileiros querem deles justamente o que o senhor tanto lamenta a ausência: o drible. Ele acontece, mas na zona do campo onde é mais produtivo: da intermediária para dentro da área do oponente. Neymar, Coutinho, Douglas Costa, Willian, David Neres, Malcom…O Real Madrid acabou de contratar dois muito promissores: Vinicius Júnior e Rodrygo. Não é o problema.

Nosso gargalo é outro, está no meio-campo. Aí, sim, o senhor tem razão. Mas Arthur está chegando ao Barcelona para começar a resolver este problema. E posso garantir: nas divisões de base tem gente trabalhando para formar jogadores mais qualificados para pensar e ditar o ritmo, de área a área.

Sim, muitos profissionais que não jogaram bola. Mas estudaram para a tarefa. Buscaram conhecimento através da literatura de Portugal e de outros países. Sabe a razão? Porque pessoas como o senhor e Vanderlei Luxemburgo, um dos que mais criticam a parte teórica vinda de Portugal e defende que o brasileiro nada tem a aprender com os lusitanos, nunca se preocuparam em deixar algo registrado sobre a nossa escola e o nosso jeito de jogar. Como os jovens treinadores vão trabalhar sem uma referência?

Aliás, o senhor também nunca treinou um time, mais de três décadas depois de se aposentar. Seria interessante ver uma equipe praticar sua visão de futebol na atualidade. Porque o jogo mudou, sim. Como tudo no mundo. Evolui e fica mais complexo. Gostar ou não vai de cada um. Lembra da dificuldade de jogar naquela partida decisiva em Dortmund quando a Holanda adiantava as linhas e marcava por pressão? Pois é o que acontece hoje, com muito mais velocidade e intensidade. Será que aquele jogo lento de outrora conseguiria se impor hoje?

Questões que ouso deixar para o senhor refletir, evitando me alongar ainda mais. Eu até lhe entendo. A crítica pela crítica é sedutora. Na Copa são 32 seleções, em 2026 serão 48! Sete jogos, quatro deles eliminatórios. A chance de ser eliminado é estatisticamente bem maior que a de sair campeão. Então basta dar pancada a torto e a direito e no final, se o título não vier, dizer que avisou. Se for campeão, basta falar que não encanta.

A crítica quando construtiva é, sim, saudável. Mas é bom lembrar que a credibilidade de quem critica sempre é a mesma de quem elogia o tempo todo. E o acerto perde muito do mérito. Afinal, até um relógio antigo quebrado, com os ponteiros parados, acerta a hora duas vezes em um dia.

Me despeço pedindo perdão pelo longo relato. Mas havia muita coisa a dizer depois de tanto tempo. Torço para que não me interprete mal. Repare que não usei do jogo sujo de citar detalhes sofridos de sua vida pessoal já relatados corajosamente pelo senhor para desmerecê-lo profissionalmente. Muito menos criticar seu estilo ousado e extravagante de viver e se vestir nos tempos de jogador, como hoje fazem com Neymar. Não é este o meu perfil.

O intuito da carta é apenas fazer pensar. Como se fosse um espelho. Mesmo que partindo de um homem de 45 anos direcionada a alguém que tem idade para ser seu pai. A torcida é que sirva para algo útil, caso chegue ao senhor.

Saudações!

Sobre o Autor

André Rocha é jornalista, carioca e blogueiro do UOL. Trabalhou também para Globoesporte.com, Lance, ESPN Brasil, Esporte Interativo e Editora Grande Área. Coautor dos livros “1981” e “É Tetra”. Acredita que futebol é mais que um jogo, mas o que acontece no campo é o que pauta todo o resto. Entender de tática e estratégia é (ou deveria ser) premissa, e não a diferença, para qualquer um que trabalha com o esporte. Contato: anunesrocha@gmail.com

Sobre o Blog

O blog se propõe a trazer análises e informações sobre futebol brasileiro e internacional, com enfoque na essência do jogo, mas também abrindo o leque para todas as abordagens possíveis sobre o esporte.