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André Rocha

Já é hora de aceitar nossa alma copeira, caótica e amadora no futebol

André Rocha

15/08/2018 08h05

Você já foi voto vencido em decisão importante dentro da família, em reunião no trabalho ou de condomínio? Sempre vem aquela sensação de frustração, mas depois você costuma aceitar a conviver com aquilo que rejeita ou apenas discorda da prática.

Pois assim acontece também com quem sonha no futebol brasileiro com um calendário organizado, uma liga nacional forte e rentável. Por pontos corridos para a grande maioria das divisões visando garantir uma temporada completa viabilizando um planejamento de acordo com as receitas. Sem os estaduais, ou ao menos reduzindo bastante as datas e sendo tratados como torneios de pré-temporada para os times grandes.

Mas como pensar nisso se o chamado torcedor médio, ou a média do pensamento da maioria das torcidas, valoriza os torneios regionais, especialmente por causa dos clássicos, e estes geram boa audiência para a emissora que detém os direitos de transmissão que, por isto mesmo, paga uma boa cota?

Como convencer o dirigente a peitar a sua federação se ele prefere a aliança que pode dar uma vantagem aqui, uma arbitragem favorável acolá e fazer uma média com a torcida, podendo dizer no final do ano, se tudo der errado, que ao menos venceu algo na temporada e o rival não?

Como defender uma temporada inteira para o time de menor investimento se, na maioria das vezes, o dirigente pensa que é melhor se garantir com a cota do estadual e a chance de enfrentar os grandes mais vezes ao invés de buscar um crescimento sustentável, ainda que as partidas mais rentáveis se limitem aos possíveis confrontos na Copa do Brasil?

Como pensar em uma liga forte se os clubes que mais investem priorizam os torneios de mata-mata e escalam reservas no que deveria ser o principal campeonato? De que adianta Zinedine Zidane, tricampeão da Liga dos Campeões com o Real Madrid, dizer que considera o título da liga espanhola da temporada 2016/17 o mais importante da sua curta carreira como treinador porque, segundo ele, a disputa por pontos corridos é a que, de fato, premia o melhor trabalho?

Aqui a lógica é que para vencer as copas bastam quatro ou oito jogos, enquanto no Brasileiro ainda falta um turno inteiro. "Dá tempo de recuperar", "temos que pensar no tiro curto". Imediatismo, urgência, torcidas "bipolares" e insanas querendo taças para ontem.

Como discutir trabalhos longos de treinadores se na maioria das vezes a "dança das cadeiras" beneficia a maior parte dos agentes no processo? O dirigente porque "não ficou parado vendo o barco afundar", o jogador que se cansa dos métodos e da convivência desgastante e gosta do "fato novo". Os próprios treinadores, ao menos os mais renomados, que reclamam, mas faturam nessa roda viva com bons salários e multas rescisórias altas. Ou mesmo a imprensa, que gera pautas e esquenta os noticiários com as demissões, especulações do novo nome e depois os debates se "agora vai" com o técnico da vez.

Como defender a renovação do mercado de treinadores se os jovens muitas vezes repetem os erros dos veteranos? Ou acabam se perdendo em idealizações, enquanto os mais vividos se adaptam à nossa realidade caótica. Como defender profissionais como Roger Machado e Fernando Diniz se os seus conceitos, ao menos por enquanto, não fizeram eco nos clubes pelos quais passaram e um Renato Gaúcho volta depois de dois anos curtindo a praia e usa seu carisma de maior ídolo da história do Grêmio para resolver com simplicidade problemas que parecem tão complexos? Como duvidar do "messias" Felipão no Palmeiras, ao menos no mata-mata?

Remar contra a maré às vezes cansa. Exigir organização e planejamento para que todas as partes de beneficiem é pregar no deserto enquanto cada um está preocupado apenas com o seu problema. É o nosso jeito, não é fácil mudar. Já é hora de entender, mesmo sem aceitar, a nossa alma no futebol. Copeira, caótica, amadora. Com espasmos aqui e ali de profissionalismo, mas sem algo mais duradouro. Não é acaso que aqui haja tanta "alternância de poder", sem um clube construindo uma "dinastia".

E tantos gostam por ter mais equilíbrio, sem a previsibilidade de outras grandes ligas pelo mundo. Ainda que o nível técnico não seja dos melhores. Aliás, o que mais tem por aqui é o fã do "futebol testosterona". O jogo "pra macho". Ou seja, porradaria, jogo direto, bola parada, lateral na área adversária, disputa física, ódio ao rival (leia-se inimigo), "contra tudo e todos", inclusive a imprensa.

E tem que ser sofrido, senão não tem graça. Sem "nhenhenhe" de posse de bola, conceitinho, jogo bonito e outras "frescuras". É o jogo de Libertadores! Não por acaso tantos odeiam Pep Guardiola e outros treinadores que tentam fazer diferente.

Então que seja! Uma hora a mão cansa de esmurrar a ponta da faca. Felizmente hoje temos acesso ao melhor que o futebol internacional pode oferecer – pela TV ou agora por streaming – para quem vê o jogo e os processos no esporte de outra forma. Dá para todo mundo ser feliz. Melhor assim.

Sobre o Autor

André Rocha é jornalista, carioca e blogueiro do UOL. Trabalhou também para Globoesporte.com, Lance, ESPN Brasil, Esporte Interativo e Editora Grande Área. Coautor dos livros “1981” e “É Tetra”. Acredita que futebol é mais que um jogo, mas o que acontece no campo é o que pauta todo o resto. Entender de tática e estratégia é (ou deveria ser) premissa, e não a diferença, para qualquer um que trabalha com o esporte. Contato: anunesrocha@gmail.com

Sobre o Blog

O blog se propõe a trazer análises e informações sobre futebol brasileiro e internacional, com enfoque na essência do jogo, mas também abrindo o leque para todas as abordagens possíveis sobre o esporte.