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André Rocha

A simples lição que deve ficar para Felipão: tudo evolui!

André Rocha

02/09/2019 21h31

Foto: Marcello Zambrana/AGIF

Nas entrevistas para o livro "1981″ com o amigo Mauro Beting pela Editora Maquinária, Zico e Júnior confirmaram uma impressão forte ao ver ou rever jogos do lendário Flamengo campeão mundial e da Libertadores: aquele time sofria mais quando enfrentava uma equipe que tinha coragem para adiantar e pressionar a marcação. Normalmente os times do sul do país quando atuavam em casa.

Reforçada em conversa deste que escreve em um curso para treinadores no Rio de Janeiro como o aluno e ex-zagueiro Mauro, do então Atlético-PR que complicou bastante a semifinal do Brasileiro de 1983 para os rubro-negros do Rio de Janeiro. "O Zico uma vez me perguntou: 'vocês não cansam, não'?", lembrou o jogador aposentado.

Era uma grande arma dos times gaúchos, paranaenses e até catarinenses. Beneficiados pelas temperaturas mais frias ou amenas para aguentar a intensidade por mais tempo, mesmo dentro do contexto de um jogo mais lento. Ideia que sempre fez parte da escola da região do país, fortemente influenciada por argentinos, uruguaios e pela descendência europeia.

Aperfeiçoada nos anos 1970 com o zagueiro Marinho Peres chegando ao Internacional depois de uma experiência rica no Barcelona de Rinus Michels e Johan Cruyff. Peres ajudou o estudioso treinador Rubens Minelli a organizar a pressão e combiná-la com a tática de impedimento e colaborar muito com o domínio do Colorado na segunda metade daquela década.

Luiz Felipe Scolari é mais Carlos Froner que Minelli ou Enio Andrade, outra referência da escola gaúcha. Froner que acreditava na fé, na perseverança de nunca desistir e na união do grupo como armas para prevalecer em campo. Mas também acreditando na imposição física e na marcação pressionada para criar dificuldades para times paulistas e cariocas, normalmente mais técnicos e menos intensos.

Assim Felipão chamou atenção em 1987 com o Grêmio que alcançou campanha superior ao Flamengo nos dois turnos da fase de grupos da Copa União, mas o regulamento esdrúxulo classificava a equipe de maior pontuação no segundo turno caso uma equipe vencesse os dois, caso do Atlético-MG de Telê Santana. Depois na conquista da Copa do Brasil de 1991 pelo Criciúma que começou a construir a fama nacional ratificada com o título da Libertadores pelo Grêmio em 1995.

Palmeiras, Cruzeiro, seleção brasileira campeã mundial de 2002. Sempre com marcação pressão. Como esquecer da insistência com Ronaldo para reagir rapidamente à perda da bola. Movimento que acabou rendendo a bola roubada que chegou a Rivaldo e o artilheiro da Copa aproveitou o rebote de Oliver Kahn no primeiro gol da final contra a Alemanha.

Em casa, intensidade máxima desde os primeiros minutos para usar o mando de campo a favor. O adversário ainda se adaptando ao campo e ao ambiente – em tempos sem aquecimento no gramado e entrada em campo sob fortes vaias. Muitas vezes também às baixas temperaturas. Um ambiente hostil que Felipão sabia usar muito bem.

Ainda sabe, pois o Brasil campeão da Copa das Confederações em 2013 usou e abusou dessa "blitz" inicial. O Palmeiras campeão brasileiro do ano passado também. Até mesmo na derrota por 3 a 0 para o Flamengo que resultou na saída do treinador veterano. Não fosse um impedimento milimétrico de Willian o gol de Matheus Fernandes logo aos dois minutos poderia ter mudado a história do jogo e do destino do técnico no clube paulista.

Mas a resposta do Flamengo de Jorge Jesus foi justamente a evolução das práticas de Felipão. O treinador português trazendo os conceitos e princípios que norteiam os principais centros futebolísticos. Fazendo a conexão de Pep Guardiola, que atualizou e acrescentou elementos à escola holandesa do mentor Cruyff, com o método que Marinho Peres trouxe de Barcelona há mais de quatro décadas.

Organização para pressionar, virando rapidamente as chaves ataque-defesa e defesa-ataque. Mas com um acréscimo fundamental: técnica e coordenação para gerar jogo e sair dessa pressão com todos os jogadores, inclusive o goleiro Diego Alves. Solução também do Grêmio que ajudou a construir e administrar a virada no Pacaembu que eliminou o Palmeiras da Libertadores.

Um volume de jogo que complica demais a estratégia costumeira de Scolari. Tanto para pressionar como para fazer o jogo direto, com muitas ligações diretas e cruzamentos. Como se o oponente não permite e controla pela posse e com ataques seguidos? Quando acontece não adianta ter fé ou mobilizar elenco. O que falta é conteúdo de jogo mesmo.

Felipão reluta, usa seu currículo robusto como argumento e tenta negar a dura realidade que grita dentro do campo: as velhas receitas não funcionam mais no alto nível. Como quando deu trabalho e teve chances de vencer com o Grêmio o Ajax de Louis Van Gaal, o time de vanguarda no Mundial de 1995. Ou fez jogo duro com o Manchester United pelo Palmeiras quatro anos depois.

Scolari ensaiou uma reciclagem ao mudar o principal auxiliar de Murtosa para Paulo Turra, mas o título brasileiro reforçou as velhas convicções. Mesmo com reveses para Cruzeiro e Boca Juniors nas competições de mata-mata, prioridades no ano passado. Agora vem a dura lição.

Mas também uma nova oportunidade de reflexão e aprendizado. Jorge Jesus faz o Flamengo aprender a jogar sob pressão e usá-la a seu favor. Com a técnica que não se compara com a do time de Zico, mas suficiente para fugir da armadilha e enquadrar Felipão.

Porque tudo evolui, inclusive o futebol. Uma lição simples que pode ser a alavanca para quem tem a humildade de aprender. Felipão assimilou os ensinamentos de Froner e Minelli, agora é hora de beber em outras fontes.

 

 

 

Sobre o Autor

André Rocha é jornalista, carioca e blogueiro do UOL. Trabalhou também para Globoesporte.com, Lance, ESPN Brasil, Esporte Interativo e Editora Grande Área. Coautor dos livros “1981” e “É Tetra”. Acredita que futebol é mais que um jogo, mas o que acontece no campo é o que pauta todo o resto. Entender de tática e estratégia é (ou deveria ser) premissa, e não a diferença, para qualquer um que trabalha com o esporte. Contato: anunesrocha@gmail.com

Sobre o Blog

O blog se propõe a trazer análises e informações sobre futebol brasileiro e internacional, com enfoque na essência do jogo, mas também abrindo o leque para todas as abordagens possíveis sobre o esporte.