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André Rocha

O resultadismo e a internet na lúcida entrevista de Victor Ferraz

André Rocha

05/10/2019 08h21

Imagem: Reprodução / Sportv

Palavras lúcidas que fogem da mesmice e do tom asséptico das entrevistas no futebol merecem ser disseminadas e também dissecadas na tentativa de buscar o melhor de suas entrelinhas. Eis um dos papeis do jornalismo. Por isso vale o registro e a análise do que disse Victor Ferraz na coletiva de sexta no CT Rei Pelé antes da partida do Santos contra o Vasco em São Januário.

– Como os resultados não aconteceram nos últimos jogos esquecem do início do campeonato que foi muito bom. Futebol sempre foi resultado, mas agora com a chegada da internet ficou ainda mais. Sobre a discussão do Filipe Luís e Arão (contra o Grêmio em Porto Alegre pela Libertadores), eu ouvi em um programa esportivo: 'estão vendo como os jogadores do Flamengo hoje têm ambição, eles brigam em campo…' Eu fiquei pensando que só estavam falando assim por causa do momento bom. Não tem como falar mal. Se fosse em um momento ruim diriam 'Jorge Jesus não tem comando', 'o grupo está desunido' ou 'estão querendo derrubar o treinador'. 

O futebol no Brasil é analisado na base da narrativa construída de trás para frente. O resultado foi ruim? É preciso encontrar "as cinco razões" para a queda do time para colocar na manchete que vai atrair cliques na internet ou audiência na TV ou no rádio. Mesmo que seja apenas uma oscilação natural, a aleatoriedade do futebol ou, como disse o próprio Ferraz, o mérito dos adversários no estudo da equipe "da moda".

– Tivemos sequência jogando bem e passamos a ser visados. Tínhamos um estilo e aproveitávamos parte do campo e fragilidade do adversário, que prefiro não comentar, de uma forma que não conseguiam marcar. Do outro lado há bons treinadores e passaram a tirar o que tínhamos de melhor. Foi puramente coisa tática e técnica, e mérito dos adversários. Não é vontade, ambição, falta de vontade de ser campeão.

O torcedor tem o direito de ver apenas seu time jogar e analisar a partir dele. Ou seja, se o resultado não acontece a culpa é dos jogadores e do treinador. Mas formadores de opinião não podem trabalhar com esse olhar tão parcial e devem conhecer as outras equipes para contextualizar o que acontece nos jogos. Pior ainda quando resumem tudo a "faltou raça" e "apurações" como o que o jogador faz na noite da véspera da folga.

Mais complicado ainda é confundir o que é jornalismo e o que é o "formador de opinião" do clube. Ou seja, aquela página ou conta dedicada ao time de coração que é seguida pelos apaixonados em detrimento da "mídia vendida" que muitas vezes está apenas fazendo um trabalho honesto e expondo mazelas que os fanáticos só vão reconhecer justamente quando as vitórias desaparecem – o Cruzeiro está aí para não deixar dúvidas. Mas como por aqui vigora a lei do "roupa suja se lava em casa", os torcedores se sentem mais à vontade para criticar sem a presença virtual dos rivais, pois não viram alvos do sarcasmo e dos memes. Legítimo.

Sem as práticas do ofício, porém, essas vozes "oficiais"  fazem algo que parece jornalismo, mas seguem o que se faz de pior nas redações: trabalham para fabricar crises. As redes sociais surgiram como algo saudável para dar voz a todos, mas acabou mudando percepções e tirando os filtros que o bom jornalismo utiliza para buscar a versão mais próxima da realidade. Então a visão pessoal, o "feeling" e outras subjetividades são colocadas acima da apuração rigorosa e temos esse mundo paralelo criticado por Ferraz.

– Entro em outro ponto que é criar situações que viram verdade. De dez dias para cá muitos torcedores questionaram, vi donos de página de Instagram, que são formadores de opinião. Donos de páginas grandes formam opinião e devem ter responsabilidade. Falaram de existir jogadores insatisfeitos, derrubar Sampaoli. Todos vocês viram. Isso aí é de uma mediocridade gigante. Não sei como o cara cria um negócio desse. Eu sou o capitão, não há como algo ser feito sem passar por mim. Conheço cada canto desse CT. É querer inventar algo e transferir parte técnica para o caráter.

Nesta última frase ele toca em algo cultural do futebol brasileiro: se o jogador não está rendendo é porque tem algo por trás, algum desvio de caráter. Como se um time formado por pessoas íntegras e trabalhadoras não pudesse ser derrotado. A velha convicção de que basta se esforçar que o talento vai decidir. Novamente o que se esquece é que há qualidade também do outro lado.

Tudo isso isenta o Santos de Jorge Sampaoli de críticas? Óbvio que não. Houve uma queda de desempenho que interferiu nos resultados. As eliminações precoces nas competições de mata-mata (Sul-Americana e Copa do Brasil) também devem entrar na análise da temporada. É preciso recuperar bola e pontos, mas sem o apocalipse que se costuma criar por aqui. Olhando mais para o campo e menos para vestiário e bastidores. Ou na medida exata para a observação mais completa.

Sem o resultadismo que contamina quase tudo. Por isso as declarações de Ferraz, que deveriam ser corriqueiras, merecem destaque. Pelo olhar além do superficial e por tocar nas feridas que tantos querem esconder. É a boa polêmica, que faz pensar e rever posições. Artigo raro no Brasil, mais ainda no futebol que envolve paixão. Mas um pouco de racionalidade sempre faz bem. Desta vez o lateral do Santos foi a voz da razão.

 

Sobre o Autor

André Rocha é jornalista, carioca e blogueiro do UOL. Trabalhou também para Globoesporte.com, Lance, ESPN Brasil, Esporte Interativo e Editora Grande Área. Coautor dos livros “1981” e “É Tetra”. Acredita que futebol é mais que um jogo, mas o que acontece no campo é o que pauta todo o resto. Entender de tática e estratégia é (ou deveria ser) premissa, e não a diferença, para qualquer um que trabalha com o esporte. Contato: anunesrocha@gmail.com

Sobre o Blog

O blog se propõe a trazer análises e informações sobre futebol brasileiro e internacional, com enfoque na essência do jogo, mas também abrindo o leque para todas as abordagens possíveis sobre o esporte.