Por que o grito de campeão transborda da garganta do torcedor do Flamengo
Na saída do intervalo no Maracanã novamente abarrotado, a vitória parcial do Bahia por 1 a 0 apontava o maior desafio para o Flamengo de Jorge Jesus. Era o algoz do turno, último time a vencer os rubro-negros, há 22 partidas – dezoito no Brasileiro. O líder encarava pela primeira vez a missão de buscar uma virada jogando em casa.
Isso sem Jorge Jesus à beira do campo – suspenso pelo terceiro amarelo, foi substituído pelo auxiliar João de Deus. Também sentindo a ausência de Arrascaeta, o meia que cria os espaços em retaguardas bem fechadas. Como a do time de Roger Machado, novamente armado no 4-1-4-1 que compacta os setores em 30, 35 metros. Com todos os jogadores de linha guardando a meta de Douglas Friedrich e prontos para os contragolpes.
Explorando o lado de Rodinei, mais uma vez o "elo fraco" do time na reposição a Rafinha, também suspenso. Vacilando duas vezes no gol do adversário: mal posicionado e depois permitindo que Elber pegasse o rebote da própria cabeçada e batesse para Willian Arão marcar contra, em raro lance de infelicidade do volante na nova fase com Jesus.
O time do "arame liso" cercaria, tocaria a bola, mas dificilmente furaria o organizado sistema defensivo do oponente. A equipe "pecho frio", que decepcionou tantas vezes em jogos decisivos, derreteria mentalmente com a desvantagem. Com o gol sofrido em lance iniciado pela falta de sorte de Pablo Marí, que desarmou Nino Paraíba, mas a bola bateu em Filipe Luís e voltou para o lateral fazer o cruzamento procurando Elber. A própria torcida murcharia com as adversidades que por tantas vezes fizeram o time de coração sucumbir nos últimos anos. Parecia que não era o dia.
Mas esse Flamengo é diferente. A começar pela coragem de mudar taticamente de acordo com o que pede a partida. O plano inicial com Vitinho aberto pela direita, Bruno Henrique do lado oposto e Everton Ribeiro por dentro, atrás de Gabriel Barbosa. Provavelmente para criar sobrecarga pelos lados e inibir os avanços dos laterais do Bahia, principalmente Nino Paraíba que faz com Artur a "ala forte" da equipe.
Depois com Bruno Henrique por dentro fazendo dupla com Gabriel, Everton voltando a ser ponta articulador pela direita e Vitinho retornando ao setor esquerdo. Ainda faltando a infiltração, o toque criativo, apesar da posse de bola e do volume de jogo. A missão era mesmo complicada.
Mas Reinier voltou para a segunda etapa na vaga de Vitinho. A joia da base que não foi para a seleção sub-17 ficou na referência do ataque, como uma espécie de centroavante para aproveitar a estatura e o vigor físico. Bruno Henrique voltou a abrir pela esquerda e Everton Ribeiro e Gabriel alternavam: um aberto à direita, outro mais por dentro.
Funcionou rápido, com Everton pelo meio acionando Gabriel. O artilheiro canhoto serviu com o pé direito um cruzamento preciso para Reinier empatar de cabeça. Mas não havia nada decidido, o Bahia era mais um adversário que, mesmo vivendo mau momento sem vencer há cinco partidas, jogava a vida para se recuperar e também desafiar o grande time do país no momento.
A torcida deu outra prova de confiança ao não questionar com vaias ou gritos de "Burro!" a troca de Gerson por Piris da Motta. Afinal, é praxe no Brasil o time precisando da vitória trocar volante ou meio-campista por atacante, na maioria das vezes desequilibrando os setores. Mas era preciso proteger melhor Rodrigo Caio e Pablo Marí. Arão ganhou mais liberdade.
Filipe Luís também. O lateral que foi alvo de piadas e memes nos 3 a 0 em Salvador, em estreia um tanto precipitada pela falta de condicionamento físico, já fazia boa partida. Mas foi primoroso no segundo tempo. Como articulador por dentro, com seus passes precisos e objetivos. Capricho e talento na inversão para Gabriel, novamente infiltrando a partir da direita, servir Bruno Henrique, vice-artilheiro da competição com 16 gols.
Virada consolidada com a inesperada cobrança de falta de Arão no travessão que Gabriel aproveitou o rebote para chegar aos 21 gols, igualando Zico em 1980 e 1983. Faltando seis rodadas para o fim do campeonato. Também consagrar uma de suas melhores atuações com a camisa do clube. O grande destaque individual ao lado de Filipe Luís.
Três a um. Um segundo tempo bem diferente do que o Flamengo costumava apresentar. Em bola e força mental. Depois da demonstração de maturidade na quinta para "tourear" no Nílton Santos um Botafogo duro, por vezes violento e disposto até a deixar a vida em campo, a equipe mostrou confiança no próprio taco para construir uma virada de time pronto para voos maiores. Com 62% de posse, 19 finalizações – onze no segundo tempo – e 21 desarmes, muitos deles no campo de ataque. Um certo exagero nos cruzamentos: quarenta e um! Mas trocando 461 passes, contra apenas 190 do Bahia.
Por isso foi inevitável a empolgação da torcida. Os mais velhos só viram tamanha imposição sobre os rivais e tantas vitórias seguidas, sem maiores oscilações ou vacilos por conta do "oba oba", na geração Zico que pode ser estendida até o time do "Maestro" Júnior em 1991/1992. Os mais jovens nem no Brasileiro de 2009, com arrancada só na reta final, ou nos títulos de Copa do Brasil (2006 e 2013).
O apaixonado, escaldado por tantas decepções, vinha segurando a onda com pés no chão. O grito de "É campeão!", porém, transbordou da garganta neste domingo. Do peito estufado e orgulhoso com a equipe que vai demolindo recordes, lotando o Maracanã e vencendo de todas as maneiras possíveis. Desta vez foi a virada que fez a vantagem para o Palmeiras aumentar para dez pontos. Pode chegar a 13, com um jogo a mais, se vencer o Vasco em jogo antecipado para o Fla decidir a Libertadores no dia 23 em Lima.
Agora é com a matemática para confirmar o título, mas o rubro-negro já consagrou o time de Jorge Jesus. De João de Deus. Que parece abençoado pelo Cristo e destinado a redimir a maior torcida do país com vitórias e taças. Ao menos o Brasileiro parece questão de tempo.
(Estatísticas: Footstats)
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