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André Rocha

Setién, o "cruyffista" para resgatar mais a coragem que o DNA do Barcelona

André Rocha

14/01/2020 13h58

Foto: Reuters

Quando Luis Enrique conseguiu repetir em 2014/15 o feito de Pep Guardiola e, em sua primeira temporada como treinador do Barcelona, alcançou a tríplice coroa com os títulos de La Liga, da Copa do Rei e da Liga dos Campeões, além do tridente ofensivo sul-americano formado por Messi, Suárez e Neymar, chamava atenção as mudanças no estilo de jogo da equipe.

A titularidade de Ivan Rakitic, colocando a bandeira Xavi Hernández no banco de reservas, apontava uma busca por mais intensidade e jogo vertical. As marcas da escola do clube ainda estavam lá, porém com um pouco mais de rapidez na decisão das jogadas e também organização defensiva para, se fosse o caso, jogar em velozes transições na frente. A bola chegando rapidamente a Messi, que acionava Suárez e Neymar ou partia para decidir sozinho cortando da direita para dentro.

Foi a consolidação da variação do 4-3-3 para o 4-4-2, repetindo o que Carlo Ancelotti fizera no Real Madrid na temporada anterior. No time merengue, o objetivo era liberar Cristiano Ronaldo. Na equipe catalã, Messi era quem ganhava liberdade. Rakitic abria pela  direita e Neymar recuava à esquerda, formando a segunda linha de quatro com Busquets e Iniesta.

Ideia mantida por Ernesto Valverde quando assumiu a equipe em 2017 vindo do Athletic Bilbao. Com Messi mais velho, menos participativo fisicamente, porém muito influente nas ações de ataque, qualificando passes e aprimorando finalizações. Gradativamente, a ideia de um Barcelona pragmático e letal nos contragolpes com o argentino e Suárez na frente foi ficando cada vez mais sedutora.

Também problemática, já que a posse de bola foi se tornando inócua, a transição ofensiva mais lenta e a intensidade diminuindo, justamente na contramão do futebol mundial. Jogadores como Piqué e Busquets tentam compensar na técnica e na experiência, mas em algumas partidas são atropelados fisicamente. As derrotas com eliminações para Roma e Liverpool nas últimas duas edições da Liga dos Campeões deixaram isso bem claro.

Justamente os reveses que pesaram contra Valverde e a derrota de virada por 3 a 2 para o Atlético de Madrid na semifinal da Supercopa da Espanha foi apenas a gota d'água de uma relação que já vinha se deteriorando. Apesar dos bons números – 74% de aproveitamento com 97 vitórias, 32 empates e 16 derrotas – e os dois títulos espanhois e um da Copa do Rei.

A condução da demissão não foi das mais corretas, com o clube admitindo publicamente o contato com Xavi Hernández no Catar e Valverde comandando o treinamento na segunda-feira para depois ser comunicado. Mas o fim de ciclo era nítido. Porque o Barcelona tinha perdido praticamente toda a essência, tudo que transformou a equipe em sinônimo de conquistas e também entretenimento.

O que Johan Cruyff aprendeu com Rinus Michels, seu treinador no Barcelona e na seleção holandesa, e passou para Pep Guardiola. Ainda influenciou tanta gente pelo mundo. Como Quique Setién, treinador de 61 anos que chega sem títulos no currículo, porém carregando as convicções que foram a linha mestra do Barça: controle pela posse de bola e a inegociável proposta de jogar voltado para o ataque.

Um "Cruyffista" incorrigível. Ciente das novas responsabilidades, mas seguro. Como deixou claro na coletiva de apresentação: "Sempre escuto a todos, mas é difícil de me tirar coisas da cabeça, se estou convencido. E todos sabemos como jogam minhas equipes. Sou o primeiro a defender meu time e morrer com minhas ideias".

Seus trunfos para ser lembrado por um gigante global foram o sexto lugar na liga espanhola do Real Betis em 2017/18 e uma vitória por 4 a 3 sobre o próprio Barcelona no Camp Nou. Jogando olho no olho, duelando pela posse de bola e atacando. A ponto de receber de Busquets uma camisa autografada e com elogios à "maneira de ver o futebol". Com a coragem que faltou ao time de Valverde em momentos cruciais.

A mensagem é clara: quem tem o melhor jogador do mundo não pode se acovardar. Como no vídeo que viralizou do comportamento dos jogadores do time blaugrana no intervalo em Anfield dos trágicos 4 a 0. Perdendo por apenas 1 a 0, ainda com vantagem por ter vencido na ida por 4 a 1, e depois de um primeiro tempo relativamente equilibrado, o semblante dos jogadores era de fracasso inevitável. Com Jordi Alba chorando pela falha no gol de Origi. Inacreditável. E Valverde foi incapaz de transmitir confiança e fazer o time atacar para voltar a se impor no confronto.

O Barcelona sinaliza uma volta às raízes, ao DNA, à sua escola de futebol. Mas não é só isso, nem pode. Até porque o próprio Guardiola, que neste século simbolizou esse estilo, já trata aquele time lendário da virada da década passada como algo datado, revisto. Que Luis Enrique atualizou. Que Valverde primeiro estagnou, depois fez retroceder.

Com Setién se espera diversão e gols, mas, principalmente, a vontade inquebrantável de atacar. De "morrer atirando", se for o caso. Não se resumir a Messi, que já é muito. Mas não o suficiente diante do que o Barça simboliza para o mundo. Reconquistar a Champions é importante, mas trazer de volta o brilho nas retinas de quem ama o futebol do clube é que é fundamental. O que marca a alma.

Sobre o Autor

André Rocha é jornalista, carioca e blogueiro do UOL. Trabalhou também para Globoesporte.com, Lance, ESPN Brasil, Esporte Interativo e Editora Grande Área. Coautor dos livros “1981” e “É Tetra”. Acredita que futebol é mais que um jogo, mas o que acontece no campo é o que pauta todo o resto. Entender de tática e estratégia é (ou deveria ser) premissa, e não a diferença, para qualquer um que trabalha com o esporte. Contato: anunesrocha@gmail.com

Sobre o Blog

O blog se propõe a trazer análises e informações sobre futebol brasileiro e internacional, com enfoque na essência do jogo, mas também abrindo o leque para todas as abordagens possíveis sobre o esporte.