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André Rocha

Jorge Jesus é o tão esperado "Bernardinho" no futebol brasileiro

André Rocha

05/02/2020 00h37

Foto: Ricardo Moreira / Photoarena / Agência O Globo

Julho de 2006. Depois da eliminação da seleção brasileira comandada por Carlos Alberto Parreira para a França de Zinedine Zidane que perderia a final da Copa do Mundo disputada na Alemanha para a Itália, o tema em debate no futebol brasileiro era o trabalho, ou a falta deste, que não sustentou o talento.

De fato, a preparação que começou em Weggis, na Suíça, foi atropelada por um grupo midiático, extenuado por temporadas duras na Europa, alguns acomodados por tantas conquistas e preocupados com recordes pessoais.
Em toda essa espécie de "inquisição" a cada Mundial que o Brasil perde, muitos exaltavam Luiz Felipe Scolari, campeão quatro anos antes e semifinalista com Portugal. Mas havia uma utopia no ar: e se Bernardinho assumisse a seleção de futebol?
O treinador do vôlei masculino vivia seu auge. Desde 2001 até então, vencera o Mundial em 2002, os Jogos Olímpicos de 2004, cinco das últimas seis ligas mundiais e em dezembro daquele ano seria bicampeão mundial no Japão atropelando os adversários com um estilo revolucionário que mudaria o esporte para sempre acelerando os ataques pelas mãos do levantador Ricardinho.
É óbvio que na nossa cultura resultadista e dentro de uma lógica simplista os resultados eram a grande credencial de Bernardinho para se tornar referência. E até o título olímpico no Rio de Janeiro em 2016 ele construiria uma trajetória lendária de um dos técnicos mais vencedores nos esportes coletivos em todos os tempos.
Nas principais competições foi sempre ouro ou prata. Na grande maioria terminou no pódio. Na reta final e atualmente, dirigindo o SESC-RJ, um pouco mais sereno. Por isso as aspas no "Bernardinho" do título do post.
A característica mais marcante, porém, era a exigência máxima e constante. Sem se acomodar com conquistas, obcecado por trabalho, inovação nos treinamentos, estudo dos adversários. Fazendo os comandados treinarem quando os períodos de escala nos aeroportos eram mais longos, logo depois de vitórias em que o desempenho não era satisfatório e nas manhãs que antecediam partidas decisivas. Em um esporte que, na grande maioria das vezes, a final é disputada um dia depois das semifinais. Tudo regado com muitas broncas à beira da quadra.
Não eram poucos os relatos de jogadores que, quando se sentiam em dificuldades na quadra, lembravam do tanto que trabalharam e se sacrificaram para estar ali e davam aqueles 10% a mais que faziam diferença e garantiam as conquistas. Eles podiam lamentar na hora do treino, mas sorriam com os trofeus e medalhas de gerações vitoriosas do vôlei.
Para muita gente era o que faltava no futebol: um "maluco" para botar as estrelas para correr, cobrar o máximo de suor e extrair o melhor de tanto talento. Bom lembrar que o Brasil de 1994 a 2005 teve sete de onze melhores do mundo. E ainda teria Kaká em 2007. Mas a preguiça foi um pecado letal na Alemanha há quase 14 anos. Por isso a aventura com Dunga estreando como treinador para exigir comprometimento.
Chegamos a 2020. Não temos mais o protagonismo, nem individualmente na Era Messi x Cristiano Ronaldo, nem no jogo coletivo. A reflexão depois dos 7 a 1 em 2014 teve um espasmo com Tite de 2016 até a Copa do Mundo de 2018. O insucesso e os privilégios concedidos a Neymar na Rússia minaram o trabalho, assim como o desempenho abaixo depois da Copa, mesmo com a conquista sul-americana em casa no ano passado.
Época em que Jorge Jesus chegou ao Flamengo. Uma incógnita que virou certeza em seis meses com as conquistas do Brasileiro com recorde de pontos e da Libertadores, feito inédito no país. Quebrando paradigmas, como a da necessidade de priorizar uma competição e rodar muito o elenco para evitar desgaste. Jesus escalou o melhor possível quase sempre e o time voou fisicamente durante a maior parte do tempo.
Começa 2020 colocando o elenco principal, estelar e reforçado, para entrar em campo uma semana depois da apresentação para a pré-temporada. O português antecipou o retorno das próprias férias em uma semana e, pensando na disputa da Supercopa do Brasil no dia 16 de fevereiro, resolveu utilizar os jogos pelo Carioca, inicialmente desprezado, como uma preparação.
Solução que carrega até alguma lógica, considerando que seria praticamente impossível encontrar um "sparring" para jogos-treinos, como foi o Madureira na intertemporada em junho. Mas também certo risco, por expor os atletas a jogos oficiais, com o adversário competindo forte e sem a possibilidade de fazer substituições livremente ao longo da partida.
Jorge Jesus matou no peito e ainda colocou o time para treinar intensamente por uma hora e meia na manhã da partida na segunda-feira. Corriqueiro na Europa de temperaturas amenas, não no calor escaldante do Rio de Janeiro. O Resende abriu o placar no segundo tempo e muitos pensaram que o time se entregaria ao cansaço e à falta de sintonia naturais com tão pouco tempo de trabalho.
A equipe contou com o auxílio luxuoso dos estreantes Michael e Pedro, mais Gerson que iniciou no banco para que Diego Ribas tivesse oportunidade entre os titulares. Todos vindo da reserva para reoxigenar a equipe que voou na reta final e virou a partida para 3 a 1 no Maracanã. Com Jesus muitas vezes vociferando à beira do campo exigindo sempre mais.
Difícil prever se a estratégia vai durar, mas de Jorge Jesus é possível esperar qualquer coisa. Ainda que, por coerência, ele deva segurar um pouco o esforço depois das disputas da Supercopa do Brasil e da Recopa Sul-Americana para que o time não chegue em dezembro com oitenta partidas disputadas ou mais. Justamente a grande reclamação depois da derrota para o Liverpool no Mundial de Clubes.
Mas serviu para mostrar para torcida, imprensa e para os próprios jogadores rubro-negros que o nível de exigência seguirá muito alto. Quem diria que o tão esperado correspondente a Bernardinho no futebol brasileiro viria quase 14 anos depois. De Portugal que foi de Felipão em 2006. Não na seleção, mas em um clube do país.
Não por acaso vencedor e com fome para mais conquistas. Sem refresco.

Sobre o Autor

André Rocha é jornalista, carioca e blogueiro do UOL. Trabalhou também para Globoesporte.com, Lance, ESPN Brasil, Esporte Interativo e Editora Grande Área. Coautor dos livros “1981” e “É Tetra”. Acredita que futebol é mais que um jogo, mas o que acontece no campo é o que pauta todo o resto. Entender de tática e estratégia é (ou deveria ser) premissa, e não a diferença, para qualquer um que trabalha com o esporte. Contato: anunesrocha@gmail.com

Sobre o Blog

O blog se propõe a trazer análises e informações sobre futebol brasileiro e internacional, com enfoque na essência do jogo, mas também abrindo o leque para todas as abordagens possíveis sobre o esporte.