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André Rocha

Quatro anos sem Cruyff: Holanda-74 misturava Liverpool e Flamengo

André Rocha

24/03/2020 10h32

Foto: Reuters

Confesso que o comentário do leitor "mpereira1963" no post sobre as seis partidas que mudaram a história do jogo gerou um desconforto:

"Não era pra ter um jogo da Holanda 74 nesta lista? A maior revolução tática do esporte não merecia um espaço aqui? Eita."

Na hora de elaborar a lista, confesso que não consegui definir uma das sete partidas da seleção comandada por Rinus Michels como a mais simbólica em uma mudança no esporte. A campanha toda foi muito marcante.

Mas como tenho os jogos contra Uruguai, Argentina, Brasil e Alemanha gravados e não vem faltando tempo com a quarentena pelo coronavírus, fui rever as partidas do "Carrossel Holandês" no Mundial disputado há 46 anos.

Para quem estuda futebol, recomendo esse exercício. Porque conforme o jogo evolui, o olhar muda e a tendência é passar a prestar atenção em nuances que antes passavam batidas.

Como era intensa! Na pressão logo após a perda, na circulação da bola e, principalmente, na movimentação. A Era Guardiola no Barcelona e o fato do treinador catalão citar Johan Cruyff como grande mentor nos induziam a ver semelhanças. Não havia, porém, o menor sinal do jogo de posição ou localização naquela Holanda.

Ainda que os pontas Johnny Rep e Rob Rensenbrink muitas vezes ficassem bem abertos e alargassem o campo, eles não necessariamente esperavam a bola para jogar. Participavam ativamente das trocas de funções com Cruyff e Neeskens na frente. Não raro ver os ponteiros serem ultrapassados pelos laterais Suurbier e Krol e cobrirem os espaços deixados na perda da bola.

O sistema tático era mutante, mas poderia ser chamado de "4-3-Cruyff-2". Porque o camisa 14, craque e capitão tinha ainda mais liberdade que a concedida aos companheiros para circular por todo campo partindo do centro do ataque. Era o "falso nove" por excelência. A ponto de receber a bola como o jogador mais recuado e arrancar para sofrer o pênalti convertido por Neeskens no início da decisão da Copa.

O "4-3-Cruyff-2" da Holanda de Rinus Michels tinha movimentação, pressão e muito volume de jogo para sufocar os adversários (Tactical Pad).

Essa mistura de liberdade para se mexer e pressão obsessiva para recuperar a bola lembra muito o que Liverpool e Flamengo fazem hoje. Jorge Jesus fez estágio no início da carreira com Cruyff e as escolas alemães e holandesas sempre trocaram muitas influências, apesar da rivalidade entre os países. E Jürgen Klopp bebeu deste caldeirão de referências.

Portanto, quando vemos Salah, Mané e Firmino trocando posições e funções e os laterais Alexander-Arnold e Robertson atacando ao mesmo tempo, isso passa pela Holanda-74. Assim como o Flamengo subindo o time todo para fazer pressão na saída do adversário, recorrendo a encaixes e perseguições eventuais no setor da bola.

A combinação de características também era interessante. Suurbier tinha mais força física pela direita para buscar o fundo, Ruud Krol mais técnica do lado oposto, inclusive atacando muitas vezes por dentro. Na zaga, o "líbero" Haan mais técnico e Rijsbergen mais "zagueiro", forte nas disputas com os atacantes. Todos protegidos pelo goleiro Jongbloed, que não era brilhante, mas sabia jogar adiantado e participar da construção do jogo.

No meio-campo, Jansen era incansável, normalmente ocupando o lado direito e às vezes fazendo todo o corredor como um ala. Muito dinâmico.  Já Van Hanegem era o organizador,quem decidia junto com Cruyff se o time trocaria mais passes e circularia mais a bola ou seguiria atacando com agressividade. O meia-armador atrás do ponta-de-lança Neeskens, se é que podemos rotulá-los como o futebol da época.

Todos se movimentando com a bola e saindo para abafar o adversário na perda. A posse era construída por esse volume, além da inteligência para saber como se comportar em qualquer região do campo. Como dizia Cruyff, cada jogador fica no máximo três minutos com a  bola em 90 minutos. Logo, o mais importante é o que se faz sem ela nos outros 87.

Por que não venceu? Talvez tenha faltado um autêntico homem-gol, o artilheiro capaz de decidir em poucas oportunidades. Como a Alemanha contava com Gerd Muller, que fez o gol do título no final do primeiro tempo. Em todas as partidas, a Holanda desperdiçou muitas chances. A campanha poderia ter sido ainda mais avassaladora.

Quem sabe o gás não tenha acabado? Afinal, a proposta de jogo poderia estar à frente do tempo, mas a preparação física era a da primeira metade dos anos 1970. Difícil manter aquela intensidade em uma sequência de sete partidas em um mês. Ainda mais dispendendo energia naqueles "arrastões" com os dez jogadores de linha atacando o adversário com a bola para colocar os demais em impedimento e amassar psicologicamente.

E os alemães, comandados por Helmut Schön, tinham craques e força mental. De novo buscando referências atuais, seria uma espécie de Real Madrid tricampeão da Champions. Imagine começar uma final de Copa em casa levando um gol sem tocar na bola. Muitos se desmanchariam, menos a Alemanha de Maier, Beckenbauer, Breitner, Overath e Muller.

Aliás, a final foi um jogaço! Especialmente o primeiro tempo disputado em um ritmo alucinante. Com Bert Vogts perseguindo Cruyff como Gentile faria com Maradona e Zico oito anos depois. E uma Holanda menos móvel e mais cautelosa, claramente intimidada com a atmosfera no estádio em Munique e a vontade inquebrantável dos rivais.

Michels merecia o título pela revolução que promoveu, incluindo, principalmente, conceitos do basquete no futebol. Reinventando o que aprendeu com o inglês Jack Reynolds, seu treinador no Ajax. A conquista com a seleção só viria 14 anos depois, na Eurocopa de 1988. Muitos dizem que replicar aquelas ideias só foi possível agora, com a evolução na preparação física.

Mas não era difícil notar ecos da "Laranja Mecânica" na Argentina de Menotti campeã mundial em 1978, no Brasil de Telê Santana em 1982, no Milan de Arrigo Sacchi e, claro, no "Dream Team" do Barcelona comandado por Cruyff que venceu a primeira Liga dos Campeões do clube em 1991/92.

Era bonito de ver. Não só pela qualidade técnica e tática, mas por conta do fator surpresa. Especialmente na estreia, contra o Uruguai. Os adversários olhavam atônitos aquela avalanche do "Futebol Total". O jogo de 2020, mas em 1974.

Uma ótima lembrança neste 24 de março, quando se completa quatro anos sem Cruyff entre nós. O legado, porém, segue intacto. Ou se transformando sem parar.

Sobre o Autor

André Rocha é jornalista, carioca e blogueiro do UOL. Trabalhou também para Globoesporte.com, Lance, ESPN Brasil, Esporte Interativo e Editora Grande Área. Coautor dos livros “1981” e “É Tetra”. Acredita que futebol é mais que um jogo, mas o que acontece no campo é o que pauta todo o resto. Entender de tática e estratégia é (ou deveria ser) premissa, e não a diferença, para qualquer um que trabalha com o esporte. Contato: anunesrocha@gmail.com

Sobre o Blog

O blog se propõe a trazer análises e informações sobre futebol brasileiro e internacional, com enfoque na essência do jogo, mas também abrindo o leque para todas as abordagens possíveis sobre o esporte.