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André Rocha

O que é lenda e o que foi, de fato, inovador na seleção de 1970

André Rocha

20/04/2020 09h03

Foto: Arquivo / CBF

A seleção de 1970 foi a maior de todas as Copas e o intuito desta análise não é desqualificá-la. Pelo contrário. Mas depois da exibição dos jogos pelo Sportv cabe uma contextualização daquela equipe dentro da história do futebol.

A Copa do Mundo no México foi atípica. Altitude, forte calor, jogos ao meio-dia para encaixarem nas grades das emissoras de TV europeias. O ritmo foi naturalmente mais baixo que o do Mundial anterior, em 1966 na Inglaterra.

Por isso a preparação cuidadosa da seleção brasileira. Não só pela necessidade de se adaptar às condições da primeira Copa na América do Norte, mas principalmente pela bagunça no ciclo de 1966. O calendário de clubes na época permitiu que o escrete canarinho ganhasse prioridade total.

A análise individualizada dos atletas, o método Cooper e a perfeita aclimatação construíram a grande revolução brasileira: a imposição física. Por isso a superioridade total no segundo tempo das partidas e o zagueiro Britto sobrando no teste realizado com todas as seleções.

Exuberância atlética que ajudou Zagallo a fazer na seleção o que já realizava no Botafogo: "defender como pequeno, atacar como grande", revelou o treinador em entrevista concedida a este blogueiro em 2014. Na Copa de 1966, Bulgária e Portugal, além de baterem em Pelé, aproveitaram os muitos espaços concedidos pelo 4-2-4 brasileiro.

No México, a equipe marcaria com todos no próprio campo, ainda que os mais adiantados apenas cercassem ou pressionassem os adversários, deixando os desarmes e interceptações para os quatro defensores e Clodoaldo à frente da retaguarda. Em vários momentos da carreira de treinador, Zagallo foi chamado de "retranqueiro" por recuar seu time sem a bola, mas em 1970 foi uma estratégia mais que acertada, com 12 dos 19 gols marcados em contra-ataques.

Foram as grandes inovações para a época, sem necessariamente deixar legado para os outros Mundiais. A Copa de 1966 já apresentara uma notável evolução física e no que hoje chamamos de intensidade, tanto em movimentos coletivos, na circulação da bola e também na força nas divididas.

O Mundial de 1974, disputado também na Europa, foi a continuação dessa evolução e teve influência maior dos grandes clubes daquele período: o Ajax de Michels e Cruyff e o Bayern de Munique de Beckenbauer e Muller. Times que baseavam seu jogo mais na pressão no campo de ataque do que em fechar espaços na defesa.

Já outras "revoluções", especialmente na montagem da seleção, que ficaram no imaginário popular não eram exatamente novidades e viraram lendas pela conquista espetacular, com seis vitórias e 100% de aproveitamento.

Rivellino como o ponta que fechava o meio-campo era legado do próprio Zagallo como jogador. Voltando para fechar o setor esquerdo em 1958, definitivamente como um terceiro meio-campista formando o setor com Zito e Didi no Chile, quatro anos depois.

Tão inovador que fez Alf Ramsey, treinador da Inglaterra, armar o seu 4-4-2 com Ball e Peters pelos lados, dando mais liberdade ao craque Bobby Charlton para se aproximar da dupla de ataque formada por Hurst e Hunt. "Meus dois Zagallos", diria o comandante do "English Team" campeão.

Carlos Alberto Torres como um lateral mais ofensivo que Everaldo do lado oposto também não era exatamente uma novidade. Em 1958, Nilton Santos já aparecia mais no ataque pela esquerda que De Sordi, depois Djalma Santos, à direita.

E a Internazionale de Helenio Herrera, bicampeã europeia e mundial em 1964/65, já tinha Giacinto Facchetti – aquele mesmo lateral que perseguiu Jairzinho e deixou o corredor aberto para o "Capita" estufar as redes de Albertosi no último gol dos 4 a 1 da final. O italiano era liberado para atacar pela esquerda, protegido pelo líbero Picchi e por Burgnich, mais marcador à direita.

O mito dos cinco camisas dez já foi abordado neste blog e vale a lembrança AQUI. Mas é claro que a combinação de características dos "dez" armadores – Gerson e Rivellino – com os "dez" atacantes – Pelé e Tostão – e o "dez" velocista, Jairzinho, foi mais uma grande sacada de Zagallo.

Tostão era um ponta de lança adaptado ao centro do ataque, com liberdade de movimentação e abrindo espaços para Jairzinho e Pelé infiltrarem. Como Everaldo descia pouco, o camisa nove, até por ser canhoto, procurava mais o lado esquerdo para trabalhar com Rivellino e Gerson ou Paulo César Caju.

Mas centroavante saindo da área já existia desde os anos 1930, com Matthias Sindelar no "Wunderteam" da Áustria. Ou na Hungria de 1954, com Hidegkuti recuando para trabalhar no meio com Bozsik, atraindo os zagueiros desavisados e marcando individualmente na execução do WM da época. Deixando a área do oponente para os artilheiros Kocsis e Puskas, que seria companheiro no Real Madrid de Di Stéfano, o argentino que seria mito na Espanha jogando com a camisa nove, mas circulando por todo campo.

A diferença de Tostão para os citados acima é que sua movimentação era mais pelos flancos e não recuando para criar com os meio-campistas. Mas até isso não era exatamente algo novo, já que o próprio Vavá, com o recuo de Zagallo e Pelé despontando como protagonista, também procurava naturalmente o lado esquerdo no Brasil bicampeão do mundo.

É claro que reunir todas essas valências num time campeão mundial é um feito único e espetacular.  Os méritos de Zagallo, comissão e jogadores são inegáveis – sem esquecer de João Saldanha, que iniciou o processo e foi fundamental no planejamento impecável. Tostão, Gerson e outros ainda em atividade na comunicação têm mais que lembrar e exaltar o que conquistaram, até para não serem engolidos pela "geração Z" que acha que o mundo começou com a internet.

Mas é dever do jornalismo se esforçar para entregar informação precisa sem perder o encantamento. O contexto sempre ajuda a não menosprezar, nem fantasiar. Melhor assim.

Sobre o Autor

André Rocha é jornalista, carioca e blogueiro do UOL. Trabalhou também para Globoesporte.com, Lance, ESPN Brasil, Esporte Interativo e Editora Grande Área. Coautor dos livros “1981” e “É Tetra”. Acredita que futebol é mais que um jogo, mas o que acontece no campo é o que pauta todo o resto. Entender de tática e estratégia é (ou deveria ser) premissa, e não a diferença, para qualquer um que trabalha com o esporte. Contato: anunesrocha@gmail.com

Sobre o Blog

O blog se propõe a trazer análises e informações sobre futebol brasileiro e internacional, com enfoque na essência do jogo, mas também abrindo o leque para todas as abordagens possíveis sobre o esporte.