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André Rocha

Flamengo de Jorge Jesus é mais Cláudio Coutinho e menos Carpegiani

André Rocha

21/04/2020 09h25

Foto: Acervo / Jornal do Brasil

Com as conquistas da Libertadores e do Brasileiro no mesmo ano, algo que nenhum time brasileiro alcançou desde o Santos de Pelé, o Flamengo de Jorge Jesus entrou para a história do futebol nacional e provocou comparações com times do passado.

Entre os rubro-negros, o paralelo óbvio é com a outra equipe lendária do clube, a campeão sul-americana e mundial em 1981, com o "bônus"  do título brasileiro no ano seguinte. Análises e mais análises sobre um possível duelo entre os Flamengos, quase sempre tendo como vencedora a equipe de quase quarenta anos atrás. Com Zico sendo o fator de desequilíbrio.

Pode ser, embora comparar times de épocas diferentes seja sempre um exercício complicado. Porque sem contextualização ou equiparação temporal, a tendência seria o time atual passar por cima fisicamente. Ainda mais pela marcação adiantada e com pressão no homem da bola que Zico, em entrevista a este blogueiro para o livro "1981" lançado em parceria com Mauro Beting e a Maquinária Editora em 2011, admitiu ser uma dificuldade grande para o time que liderou em campo. Jogo mais intenso normalmente praticado por equipes do sul do país, assim como as argentinas e uruguaias.

Mais racional é tentar buscar semelhanças entre as propostas de jogo. E analisando a trajetória vencedora que começa em 1978, com a conquista do título estadual – quando eles ainda valiam muito em um calendário sem Copa do Brasil – no gol inesquecível do zagueiro Rondinelli sobre o Vasco, um Flamengo anterior ao que Paulo César Carpegiani herdou de Dino Sani lembra mais a equipe atual. Ou uma versão desta dentro das variações táticas do treinador português.

O time campeão brasileiro de 1980, comandado por Cláudio Coutinho. Gaúcho com formação militar, preparador físico da seleção do tri em 1970 que conheceu o professor americano Kenneth Cooper e passou a adotar o então moderno método de avaliação física. Foi parar no Olympique de Marseille e de lá para a seleção olímpica, primeiro como preparador, depois supervisor e, por fim, treinador em uma emergência por conta da demissão de Zizinho.

Mesmo sem medalha, terminando em quarto lugar, acabou indicado para suceder Carlos Froner no Flamengo e assumiu em setembro de 1976. Trazendo a visão pós-Copa de 1974, impactada pela revolução do futebol holandês simbolizada por Rinus Michels. O coletivo acima do individual, organização para atacar e defender quase em ato contínuo e versatilidade dos jogadores, utilizando o termo "polivalência", além de outros que acabaram virando folclore, como "overlapping" (ultrapassagem do lateral pelo ponta) e "ponto futuro" – local onde a bola chegaria em uma jogada ensaiada.

O Fla de Coutinho amadureceu primeiro com o revés estadual para o Vasco em 1977, depois as conquistas estaduais que levaram o técnico a comandar a seleção brasileiro na Copa do Mundo de 1978 e na Copa América no ano seguinte. 1979 dos dois títulos cariocas em calendário confuso, mas também do sofrimento pela eliminação para o Palmeiras de Telê Santana no Brasileiro de 1979 com uma goleada por 4 a 1. Com o domínio local, o Brasileiro virou obsessão.

Chegou em 1980 com início oscilante até Nunes chegar para ser o camisa nove que daria o "click" na formação titular que engrenou até a decisão contra o Atlético Mineiro. Passando pela "vingança" contra o Palmeiras com implacável 6 a 2 no Maracanã. A grande atuação coletiva que consolidou o modelo de jogo.

Time que já tinha clara preocupação com conceitos atuais como amplitude, profundidade e superioridade numérica, ainda que esses termos nunca tenham saído da boca de Coutinho. O "overlapping" pela direita se dava com Tita por dentro atraindo o lateral adversário e deixando o corredor para Toninho Baiano. Forte, rápido e incansável em busca da linha de fundo.

Do lado oposto, Júlio César era o ponteiro aberto e driblador, típico da época. Júnior fazia o papel de lateral "construtor", apoiando por dentro e se juntando aos meio-campistas Andrade, Paulo César Carpegiani, Zico e ainda Tita que tinha liberdade de circulação. Cinco homens contra três, no máximo quatro do oponente no trabalho entre as intermediárias.

O Flamengo de Coutinho campeão brasileiro de 1980, com Toninho e Júlio César abrindo o campo e Junior e Tita atacando por dentro, criando superioridade numérica no meio-campo ao se juntar a Andrade, Carpegiani e Zico, que infiltrava no espaço deixado por Nunes, o centroavante móvel (Tactical Pad).

Na frente, Nunes se movimentava pelos flancos e abria espaços para a infiltração de Zico, craque, ídolo e artilheiro da equipe e daquela edição do torneio nacional com 21 gols. Sem a bola, compactação dos setores, momentos de pressão sobre o adversário com a bola e linhas adiantadas. Na fase ofensiva, toque de bola refinado e algum controle pela posse, porém com definição mais rápida dos ataques.

Que versão do Flamengo atual é parecida? Aquela em que Bruno Henrique ocupa mais o setor esquerdo, bem aberto, embora também entrando em diagonal para finalizar. Fazendo Gabriel Barbosa procurar naturalmente o lado direito e abrindo espaços por dentro para De Arrascaeta. Everton Ribeiro, assim como Tita, sai da direita para articular por dentro, colaborando com Willian Arão e Gerson. Mais Filipe Luís, o lateral que pensa mais o jogo. Na direita, Rafinha ataca mais o corredor aberto e busca o fundo.

Uma das variações de Jorge Jesus no Fla atual tem Bruno Henrique aberto pela esquerda e Gabriel Barbosa procurando mais à direita e abrindo espaços para De Arrascaeta infiltrar pelo meio. Everton Ribeiro sai da ponta para dentro armar o time com Gerson, protegido por Willian Arão. No corredor, Rafinha apoia mais aberto buscando o fundo. Do lado oposto, Filipe Luís é um lateral mais construtor (Tactical Pad).

A conexão entre Coutinho e Jesus, claro, é a escola holandesa. O brasileiro no contato com o Ajax e a "Laranja Mecânica", o português no estágio em 1993 com Johan Cruyff, a grande referência do atual treinador rubro-negro.

Paulo César Carpegiani também tinha seus pontos de contato com a Holanda: primeiro esteve em campo na derrota da seleção brasileira por 2 a 0 para a equipe de Rinus Michels em 1974, depois jogou em 1976 com Marinho Peres, que trabalhara com Michels e Cruyff no Barcelona e agregou conceitos ao Internacional de Rubens Minelli e Falcão na conquista do bicampeonato brasileiro naquele mesmo ano.

Carpegiani, claro, entendia a necessidade de rotação, porém gostava mais da bola e com toques mais curtos, embora tivesse precisão também nos lançamentos. O estilo do jogador falou alto na rápida transição para o comando técnico – aposentadoria por lesão no joelho aos 31 anos, curto período como auxiliar de Dino Sani e logo estava treinando os ex-companheiros.

Tanto que sacou o ponteiro Baroninho para encaixar o meia Lico. A ideia era soltar todas as peças à frente do volante Andrade. Aproveitando a mobilidade de Adílio, que herdou a posição de Carpegiani, porém sem o mesmo perfil organizador.

A estreia da equipe mais móvel foi espetacular nos históricos 6 a 0 sobre o Botafogo. O rival foi para o intervalo levando quatro gols e sem entender o que acontecera. Os laterais Leandro e Júnior atacando abertos ou por dentro, Andrade e Zico mais centralizados e o trio Tita-Adílio-Lico girando por todo campo, assim como Nunes mantendo a movimentação pelas pontas. Algo muito fora dos padrões da época.

Proposta que se consagrou nos 3 a 0 sobre o Liverpool em Tóquio, embora em organização mais conservadora: um 4-2-3-1 com Adílio mais próximo de Andrade, até para auxiliar Júnior que jogou sentindo o joelho direito. Tita e Lico guardando mais as posições pelos flancos e Zico buscando os espaços às costas dos meio-campistas britânicos para acionar Nunes em diagonal.

Foi no Brasileiro de 1982, disputado no primeiro semestre, antes da Copa do Mundo na Espanha, que o novo modelo de jogo foi consolidado. Com a mesma mobilidade, mas adquirindo alguns padrões. Como Nunes bem aberto, quase como um ponteiro,  e Tita, que havia abandonado a seleção brasileira por não aceitar ser ponta e Telê avisar que no meio não havia vaga, jogando por dentro.

Era a solução encontrada por Carpegiani para aproveitar um jogador de temperamento complicado, mas também de boa técnica e poder de finalização interessante. Ele e Zico articulavam pelo meio e alternavam na chegada à área adversária com Lico e Adílio, que circulava por todo campo com vitalidade impressionante. Às vezes alternando com Zico, que recuava para organizar. Ideias à frente do tempo e vencedoras.

Na vitória sobre o São Paulo por 4 a 3 no Morumbi pelo Brasileiro de 1982, um flagrante do Flamengo móvel de Carpegiani: Júnior atacando por dentro dando suporte a Adílio, com Zico dando opção mais à direita e Lico e Tita, em tese os ponteiros, centralizados. E o centroavante Nunes? Dando opção bem aberto e mais recuado pela esquerda (Reprodução TV Globo).

Mas que guardavam poucas semelhanças com o time atual. Porque era mais intuitivo e concentrava mais jogadores no trabalho entre as intermediárias. Às vezes afunilando demais os ataques e se expondo por atacar com os dois laterais simultaneamente.

A equipe de Cláudio Coutinho, um ano antes, era mais coordenada. Faltou paciência ao treinador para ver o auge da equipe que formou. Irritado com a diretoria, partiu no início de 1981 para uma aventura nos Estados Unidos, comandando o Los Angeles Aztecs. Voltou em novembro daquele ano e foi receber os campeões da Libertadores no aeroporto no dia 24. Três dias depois, convidou Junior para comer  peixe depois de um mergulho para pesca submarina nas Ilhas Cagarras, arquipélago próximo da praia de Ipanema. Não voltou. Faleceu, por afogamento, aos 42 anos.

Deixou, no entanto, um legado no Flamengo mais vencedor da história. Que o time de Jorge Jesus tentou igualar ou até superar quase quatro décadas depois. Cinco troféus em nove meses, antes da pandemia. Como será na volta? A maior torcida do país sonha com um final ainda mais feliz.

Sobre o Autor

André Rocha é jornalista, carioca e blogueiro do UOL. Trabalhou também para Globoesporte.com, Lance, ESPN Brasil, Esporte Interativo e Editora Grande Área. Coautor dos livros “1981” e “É Tetra”. Acredita que futebol é mais que um jogo, mas o que acontece no campo é o que pauta todo o resto. Entender de tática e estratégia é (ou deveria ser) premissa, e não a diferença, para qualquer um que trabalha com o esporte. Contato: anunesrocha@gmail.com

Sobre o Blog

O blog se propõe a trazer análises e informações sobre futebol brasileiro e internacional, com enfoque na essência do jogo, mas também abrindo o leque para todas as abordagens possíveis sobre o esporte.