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André Rocha

"Quem vai marcar?" A pergunta fedendo a mofo que o Flamengo enterrou de vez

André Rocha

08/05/2020 13h02

Foto: Diego Vara / Reuters

"Eu não gosto de time de índio, não. Só atacar é meio complicado. É bom em determinadas situações, mas você não pode entrar no campo em desequilíbrio".

Palavras de Abel Braga, ainda como treinador do Flamengo, no dia 26 de janeiro do ano passado. A declaração veio logo depois da defesa da titularidade de Willian Arão ao lado de Cuéllar na dupla de volantes e a dificuldade alegada de reunir Everton Ribeiro, De Arrascaeta, Bruno Henrique e Gabriel Barbosa no setor ofensivo.

"Quem vai marcar?" Frase resgatada na Live que este que escreve participou no canal do companheiro Mauro Cezar Pereira no Youtube. Lembrando as seleções de 1970 e 1982, mas também sobre o futebol atual.

Esse questionamento vem desde os primórdios do futebol brasileiro. Porque nossa escola sempre foi de criar compensações defensivas para dar liberdade aos mais talentosos. Desde a "diagonal" de Flávio Costa no Brasil vice-campeão em 1950, com Bauer dando proteção à defesa e liberando Zizinho e Jair Rosa Pinto na criação das jogadas.

Passando por Zagallo como "falso ponta" em 1958/1962 para que Garrincha e Pelé desequilibrassem. Até o 3-4-1-2 de Luiz Felipe Scolari que soltava Rivaldo e os Ronaldos no último título mundial na Ásia, em 2002. Um marca, outro joga. Um "carrega o piano" para outro "solar". Um suja o calção para o outro desfilar. Ou seja, quem tem talento é privilegiado e o menos dotado tecnicamente faz o "serviço sujo". Nada mais brasileiro em sua essência.

Mas em campo fazia algum sentido pela maneira de se defender. Todos voltavam até o próprio campo, com os zagueiros muito recuados. Para que a meta não ficasse tão ameaçada, era necessário ter jogadores especialistas nos desarmes e interceptações. Ou rápidos na cobertura de laterais que nos anos 1990/2000 se transformavam em alas, cada vez mais liberados para atacar.

O Cruzeiro de Vanderlei Luxemburgo em 2003 é um símbolo do futebol da época. Os laterais Maurinho e Leandro apoiando o tempo todo, às vezes ao mesmo tempo. Alex, o meia articulador clássico, o "dez", jogando livre para municiar a dupla de ataque ou ele mesmo partir para a finalização. Amparados pelo trio de volantes Maldonado-Augusto Recife-Wendel, que protegia a zaga. Cinco atacam, cinco defendem.

Mas a grande evolução do esporte nos últimos doze anos é justamente a transformação do jogo em um fluxo contínuo de ataque-defesa. Ataca pronto para fazer a transição defensiva pressionando o adversário que acabou de recuperar a bola para tomá-la e voltar a atacar. Pressão e contrapressão. Virando a chave toda hora e mudando o comportamento rapidamente.

Assim é possível ser mais intenso nas ações porque a corrida de trinta metros para recompor, voltando da ocupação do campo de ataque até o posicionamento defensivo próximo da própria área, é mais rara e o desgaste menor. O jogador corre os mesmos 14 quilômetros por jogo, porém dentro de uma ocupação mais inteligente do campo. O movimento coletivo que divide as atribuições defensivas.

Desta forma, os jogadores mais ofensivos não precisam ser exímios marcadores. Porque a pressão é para dificultar o passe e não o desarme que evita a conclusão ou o passe decisivo lá atrás. A volta do ponteiro acompanhando o lateral, algo tão criticado pelos mais puristas, não precisa ser constante, já que o atacante vai buscar o defensor lá no campo deste.

Por isso Jorge Jesus não teve problema nenhum em reunir Everton Ribeiro, De Arrascaeta, Bruno Henrique e Gabriel Barbosa na frente. Mais Gerson, o meia pelo centro do 4-1-3-2 que é a base para outras tantas variações táticas.

Willian Arão, aquele que Abel via como o volante a mais para proteger a retaguarda, agora é o meio-campista que fica mais próximo da última linha de defesa, mas também com autorização para descer e apoiar os atacantes. Porque se houver a perda da bola, ele não terá que voltar desesperado, já que a pressão dos companheiros mais ofensivos pode gerar a retomada da bola. No mínimo o retardo do contragolpe do oponente.

Um time ofensivo, porém competitivo. O primeiro campeão brasileiro e da Libertadores desde o Santos de Pelé, capaz de duelar em alto nível com o Liverpool de Jurgen Klopp no Mundial de Clubes. Conquistando mais três taças em 2020 até a bola parar.

No nosso resultadismo de todo dia, só mesmo tal retrospecto para calar qualquer crítica anacrônica, cheirando a mofo. Mostrando que o "time de índio" é apenas uma equipe que se defende atacando, em um processo de 90 minutos. Quebrando de vez o paradigma e tornando esse debate até ridículo. Enterrou de vez.

Eis a grande contribuição do Flamengo de Jorge Jesus ao futebol brasileiro e que já gerava tentativas de respostas, como o Internacional de Eduardo Coudet e o que se esperava de Jorge Sampaoli no Atlético Mineiro, depois do que fez em 2019 no Santos, mesmo sem títulos.

Que a volta do futebol pós-pandemia traga a evolução definitiva do nosso jogo. Sem olhar para trás.

Sobre o Autor

André Rocha é jornalista, carioca e blogueiro do UOL. Trabalhou também para Globoesporte.com, Lance, ESPN Brasil, Esporte Interativo e Editora Grande Área. Coautor dos livros “1981” e “É Tetra”. Acredita que futebol é mais que um jogo, mas o que acontece no campo é o que pauta todo o resto. Entender de tática e estratégia é (ou deveria ser) premissa, e não a diferença, para qualquer um que trabalha com o esporte. Contato: anunesrocha@gmail.com

Sobre o Blog

O blog se propõe a trazer análises e informações sobre futebol brasileiro e internacional, com enfoque na essência do jogo, mas também abrindo o leque para todas as abordagens possíveis sobre o esporte.