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André Rocha

Dunga, o subestimado. Por culpa dele mesmo e do nosso jeito de ver futebol

André Rocha

30/05/2020 11h08

Imagem: Reprodução TV Globo

Dunga foi campeão mundial de juniores (sub-20) em 1983. Completaria 20 anos em outubro daquele ano, mas já demonstrava liderança, embora o capitão fosse o zagueiro Boni.

Mas chamou atenção mesmo pela capacidade de marcação. Como Geovani e Gilmar Popoca eram meias essencialmente criativos e o ataque era formado por Mauricinho, Marinho Rã e Paulinho, sem um "falso ponta" para ajudar no trabalho sem bola, Dunga ficava plantado à frente da defesa, combatia, dava carrinhos.

Volante sério, cobrava dos companheiros o tempo todo. Mesmo muito jovem, o semblante sempre fechado, também pela concentração máxima no jogo, começou a criar no imaginário popular a imagem de "bravo". Como só ele marcava, era o cara do "serviço sujo". O "brucutu" ou "carregador de piano".

Mesmo que já tivesse bom passe e chute forte e preciso de média/longa distância. Virtude que apareceria mais na seleção brasileira que venceria a medalha de prata em 1984 nos Jogos Olímpicos de Los Angeles. Jogando como segundo homem de meio-campo, à frente do volante Ademir. Assim marcou dois gols pela equipe de Jair Picerni que contava com o Internacional como base.

Do clube gaúcho foi para o Corinthians, que remontou o time com o dinheiro da venda de Sócrates para a Fiorentina. Ajudou na campanha de recuperação no Paulista de 1984 que não impediu o título do Santos de Serginho Chulapa, mas entregou fibra e foi o pilar de sustentação de um meio-campo que tinha Arturzinho, Biro Biro e Zenon.

Seguiu acertando times na breve passagem pelo Vasco, vindo do Santos. Foi em 1987 a primeira vez que este que escreve viu Dunga no estádio. Além dos desarmes, o camisa cinco exigia que seus companheiros Geovani e Tita, que completavam o meio-campo na equipe de Joel Santana, e mais Mauricinho, Roberto Dinamite e até o jovem Romário voltassem até o próprio campo e dessem o primeiro combate. Para que ele viesse por trás para roubar a bola. Assim venceu a Taça Guanabara e fez parte da campanha do título estadual.

Dunga seguiu o caminho natural de jogadores de destaque à época. Inicialmente no Pisa, depois na Fiorentina, onde ficou de 1988 a 1992. Durante este processo foi campeão da Copa América de 1989 e virou titular absoluto da seleção para a Copa de 1990.

Ali começou a via-crúcis. Para elogiar o profissionalismo do jogador, o técnico Sebastião Lazaroni cunhou o termo "Era Dunga". O impacto na imprensa e nos torcedores foi imediato. Porque ia na contramão da cultura do futebol brasileiro. "Como assim a seleção que conta com o talento de Careca, Bebeto, Romário, Jorginho, Mauro Galvão e Branco tem um volante marcador como símbolo?"

Junte a isso a escolha de um sistema com três zagueiros que era visto como "retranqueiro" e a entrada no meio-campo de Alemão, mais um jogador com características de volante, e tínhamos uma panela de pressão pronta para explodir. A seleção era vista como "europeia" e a briga por conta de premiação, com jogadores tapando com a mão o símbolo do patrocinador da CBF na foto oficial, alimentou a imagem de "mercenários".

No campo, uma seleção intensa, dedicada e com proposta ofensiva. Os três zagueiros liberavam os alas, que contavam com o suporte dos meias Alemão e Valdo, que tentavam alimentar a dupla Muller-Careca na frente. Por trás, Dunga distribuía o jogo e chegava na frente para finalizar. Foi um dos destaques da melhor atuação brasileira naquele Mundial disputado na Itália: nas oitavas de final contra a Argentina, em Turim.

Mas o lampejo de Maradona servindo Caniggia jogou tudo por terra. As muitas chances desperdiçadas cobraram um preço alto. Dunga cabeceou uma bola na trave no primeiro tempo, mas foi driblado pelo gênio argentino no gol que definiu a eliminação precoce e o volante acabou virando símbolo daquele fracasso.

Uma injustiça reparada por Carlos Alberto Parreira em 1993. Um tanto à forceps, porque o treinador da seleção tentou montar um meio-campo com um volante, Mauro Silva, e três meias – Luis Henrique, Raí e Elivelton, de início. Era a exigência da época por um futebol mais "brasileiro".

Quando Dunga se firmou como titular novamente ao lado de Mauro Silva, as críticas vieram pesadas. Como aquele "grosso" vai jogar de "oito"? No Brasil de Didi, Gerson, Rivelino, Falcão e Sócrates aquilo era considerado um acinte, uma ofensa ao futebol então tricampeão do mundo.

Na prática, Dunga era o melhor passador e o jogador que fazia o time jogar. Com passes diretos procurando os atacantes Bebeto e Muller, depois Romário. Ou invertendo para as combinações entre os laterais e os meias. Passes curtos e longos. De "chapa" ou de trivela. Um bom repertório, mesmo sem elegância e plástica.

Mas Dunga era volante, não podia armar as jogadas da seleção. E era o símbolo de uma derrota, podia "dar azar" novamente. Estereótipo e superstição sem olhar para o que acontecia no campo. Nada mais brasileiro.

Dunga virou o jogo sendo um dos destaques na conquista do tetra nos Estados Unidos. Teve personalidade para cobrar o último pênalti brasileiro antes de Baggio mandar nas nuvens as chances da Itália na decisão. Foi fundamental até nos bastidores, administrando as indisciplinas de Romário, seu colega de quarto.

Na hora de levantar a taça como capitão, um desabafo. Justo, mas que saiu desproporcional pelos muitos xingamentos. Um contraste com a alegria serena de Bellini, Mauro e Carlos Alberto Torres nas conquistas anteriores. De seleções também questionadas e criticadas pela imprensa, mas nenhum capitão quis se vingar em um momento de êxtase.

Dunga se queimou de vez. O título sem gols na final marcou uma seleção criticada. Magoado, Dunga passou a alfinetar sem nenhuma necessidade a seleção de 1982. Pragmático, não entendia como uma equipe que perdeu podia ser mais elogiada que a dele, que venceu. Comprou brigas bobas, alimentou a antipatia.

Em 1998, a briga com Bebeto durante o jogo contra Marrocos. Grito, xingamento, até uma cabeçada leve no companheiro de seleção. Durante uma partida tranquila ainda na fase de grupos da Copa do Mundo na França. Só porque o atacante veterano demorou a voltar para ajudar na marcação. Para quê?

Com nova derrota, desta vez na final para a anfitriã, mais críticas. Encerrando aos 34 anos um ciclo mais que vitorioso, porém cercado de polêmicas e ódio. De Dunga, de boa parte da imprensa e da torcida. O título de 2002, com os mesmos três zagueiros e dois meio-campistas com características de volante – Gilberto Silva e Kléberson – não atraíram tantas críticas por defensivismo. Afinal, na frente havia Rivaldo e os Ronaldos e a equipe de Felipão venceu os sete jogos, mesmo com dificuldades claras e alguns "apitos amigos".

Encerrou a carreira salvando o Internacional do rebaixamento com um gol contra o Palmeiras em 1999. Mas a maioria, tirando os colorados, lembra mesmo dos dribles humilhantes do menino Ronaldinho Gaúcho pelo Grêmio. Os detratores de Dunga também lembram de sua carreira sem grandes conquistas e clubes de ponta no exterior para menosprezá-lo, mas na época ir para a Europa significava dinheiro, prestígio e mais chances de ser convocado. Servir à seleção era o grande objetivo dos brasileiros.

E bastou o escrete canarinho fracassar em 2006, com Parreira novamente e uma seleção acusada de pouco compromisso e sem liderança para lembrarem de Dunga. Na impossibilidade de contar com o "Sargento" Scolari, a serviço de Portugal, a CBF inventou o capitão do tetra como treinador. E muitos apoiaram à época. O líder que xingava e gritava seria importante pelo "pulso firme" para controlar os craques. Outro estereótipo tipicamente brasileiro.

Venceu Copa América e Copa das Confederações, terminou na liderança das Eliminatórias. Mas de novo as brigas com jornalistas, declarações nada amigáveis, alimentando um clima de tensão que só piorava o ambiente. Patadas para explicar as ausências de Neymar e Ganso, respostas cheias de veneno para justificar uma convocação que entregava pouco além do forte time titular.

Novo revés, mais uma execração pública. Demissão e a volta em 2014, de novo para apagar incêndio. Desta vez os 7 a 1. Com apenas uma experiência no comando técnico de clube, no Internacional em 2013. Um pouco mais calmo e sorridente no trato com a imprensa e nas declarações públicas. Mas faltou conteúdo e a eliminação da Copa América Centenário encerrou o ciclo.

Muito de positivo nesses 31 anos à serviço da seleção poderia ser lembrado, mas acaba soterrado por questões menores. Responsabilidade do próprio jogador e treinador, com seu temperamento irascível, implacável, sem concessões. Tratada como virtude quando convém na cultura do futebol brasileiro. Tinha que ser o "general", mas sem se atrever a querer ser destaque como jogador. Este era o papel dos mais habilidosos, malemolentes, criativos. Ele era um "europeu" que vestia a camisa verde e amarela.

Dunga fez parte da seleção da FIFA em duas Copas do Mundo: 1994 e 1998. O melhor passador no título dos Estados Unidos – 589 corretos, só ficando atrás de Xavi em 2010 na história dos mundiais –  e um dos mais eficientes na campanha do vice, quatro anos depois. Mas poucos lembram. Porque Dunga é um dos jogadores mais subestimados da história. Por culpa dele e do jeito brasileiro de ver o futebol. Uma pena.

 

Sobre o Autor

André Rocha é jornalista, carioca e blogueiro do UOL. Trabalhou também para Globoesporte.com, Lance, ESPN Brasil, Esporte Interativo e Editora Grande Área. Coautor dos livros “1981” e “É Tetra”. Acredita que futebol é mais que um jogo, mas o que acontece no campo é o que pauta todo o resto. Entender de tática e estratégia é (ou deveria ser) premissa, e não a diferença, para qualquer um que trabalha com o esporte. Contato: anunesrocha@gmail.com

Sobre o Blog

O blog se propõe a trazer análises e informações sobre futebol brasileiro e internacional, com enfoque na essência do jogo, mas também abrindo o leque para todas as abordagens possíveis sobre o esporte.