Topo

André Rocha

O handebol nunca esteve tão presente no futebol. Por causa de José Mourinho

André Rocha

12/08/2016 08h12

O Brasil venceu a Alemanha no handebol masculino por 33 a 30 na Arena do Futuro e, ao superar um favorito à medalha de ouro, confirma a ascensão do país no esporte que já vem desde a conquista do Mundial com a seleção feminina em 2013. As chances de medalha no Rio de Janeiro são reais.

Ao contrário do futebol, o gol nesta modalidade não é raro. Saem às dezenas porque a própria dinâmica propicia isso. Seis para cada lado, mais o goleiro, precisando cobrir espaços e impedir, ou ao menos dificultar a finalização da jogada. Com as mãos, muito mais fáceis de coordenar. Tudo para tentar sair da quadra sofrendo menos gols que o oponente. Minimizar os danos.

Seleção brasileira de handebol masculino em momento defensivo na vitória sobre a Alemanha: barreira de seis para evitar ou dificultar a finalização (reprodução Sportv).

Seleção brasileira de handebol masculino em momento defensivo na vitória sobre a Alemanha: barreira de seis para evitar ou dificultar a finalização (reprodução Sportv).

Foi o que José Mourinho fez no Camp Nou em 28 de abril de 2010. Barcelona x Internazionale, jogo da volta da semifinal da Liga dos Campeões após a vitória dos neroazzurri em Milão por 3 a 1. Aos 28 minutos do primeiro tempo, Thiago Motta fez falta em Busquets e levou cartão vermelho.

Mourinho contestou muito a decisão da arbitragem com todo seu jogo de cena costumeiro. Sem admitir sair de Barcelona desclassificado pelo time de Pep Guardiola, à época seu desafiante no duelo pelo posto de melhor técnico do mundo, o português apelou.

Consciente de que o rival trocaria passes com técnica e paciência até encontrar brechas, que seriam mais frequentes com a vantagem numérica, alinhou seus nove jogadores de linha à frente da meta de Julio César quase como um time de handebol. Duas linhas chapadas. Ora duas de quatro, ora uma de cinco e outra de quatro.

Em alguns momentos com seis atrás: os quatro defensores mais centralizados e os dois ponteiros recuados como laterais. Um deles era Samuel Eto'o, campeão da tríplice coroa com o Barça um ano antes. Como centroavante e artilheiro do time na temporada. Humildade absoluta.

Flagrante da Internazionale com seus nove homens guardando a própria área, sete deles quase alinhados. Em 2010, José Mourinho organizou a retranca e o jogo virou handebol (reprodução ESPN).

Flagrante da Internazionale com seus nove homens guardando a própria área, sete deles quase alinhados. À esquerda, Samuel Eto'o como lateral. Em 2010, José Mourinho organizou a retranca e o jogo virou handebol (reprodução ESPN Brasil).

Mourinho diz que pensou apenas em evitar uma goleada. Na prática, o feito histórico de sair derrotado apenas por 1 a 0, com o gol em impedimento de Piqué, mudou os rumos do esporte. Nunca o handebol esteve tão presente.

Porque tirou a vergonha e organizou a retranca da forma mais pragmática já vista. Ferrolhos sempre existiram. Na própria Internazionale bicampeã europeia nos anos 1960 com o técnico argentino Helenio Herrera. Mas eram tempos de líbero e marcação individual. A própria Grécia campeã da Euro em 2004, já com marcação por zona. Mas não tão radical.

A ideia de Mourinho era tirar espaços, ter corpos formando uma barreira. Porque se a lógica do jogo posicional de Guardiola é trocar passes até encontrar uma fresta para a infiltração, se não há a brecha sobra só a posse de bola. Inócua.

Nascia ali a grande dicotomia do futebol atual: jogo de posse versus jogo de transição. Caça e caçador, gato e rato. Treinadores escolheram seus lados, outros tentam transitar entre esses dois universos, conforme a necessidade. Como Carlo Ancelotti, que impôs a Guardiola sua pior derrota, nos 4 a 0 do Real Madrid sobre o Bayern em Munique na semifinal da Liga dos Campeões em 2014.

Porque adicionou o contragolpe letal à fórmula de Mourinho. Sempre um problema para quem prefere controlar a pelota. Linhas compactas, saída rápida para o ataque em toques rápidos e objetivos. Ainda a jogada aérea, especialmente na bola parada.

Nos 4 a 0 sobre o Bayern de Munique comandado por Guardiola, o Real Madrid de Carlo Ancelotti se fechou com linhas de quatro muito próximas, mas adicionou contragolpes letais aproveitando os espaços deixados pelo adversário que ocupava o campo de ataque (reprodução ESPN Brasil).

Nos 4 a 0 sobre o Bayern de Munique comandado por Guardiola, o Real Madrid de Carlo Ancelotti se fechou com linhas de quatro muito próximas, mas adicionou contragolpes letais aproveitando os espaços deixados pelo adversário que ocupava o campo de ataque (reprodução ESPN Brasil).

A última Eurocopa, inchada com 24 seleções, proporcionou diversos duelos de estilos. Seleções sem técnica e tradição alinhando nove, às vezes dez jogadores num espaço de não mais que vinte metros para evitar o gol. Sem os confrontos individuais. Marcação por zona na essência. Corpos impedindo que o adversário ocupe os espaços importantes.

Para muitos é a antítese do futebol. Este que escreve também aprecia o futebol mais ofensivo, que busca o gol. Ainda o mais vencedor se considerarmos que a Alemanha é a atual campeã mundial e Barcelona e o Bayern de Munique de Guardiola empilharam títulos nas últimas temporadas.

Mas não é por acaso que exemplos de equipes menos talentosas faturando taças antes inimagináveis se tornem mais frequentes. Atlético de Madrid, Leicester, Portugal. Porque é necessário mais treino que talento para fazer uma marcação bem coordenada e atacar os espaços deixados pelos oponentes com toques rápidos e em progressão. Ou nas jogadas aéreas exaustivamente treinadas.

Se Guardiola mexe com estruturas e conceitos do futebol desde 2008, não é absurdo dizer que a resposta de Mourinho deixou um legado mais abrangente. Para os românticos, a culpa é dele. Pelo simples fato de que construir é mais complexo. Em qualquer área da vida.

Inclusive no handebol, ainda que o gol seja ordinário. Por isso a defesa é de ouro.

 

Sobre o Autor

André Rocha é jornalista, carioca e blogueiro do UOL. Trabalhou também para Globoesporte.com, Lance, ESPN Brasil, Esporte Interativo e Editora Grande Área. Coautor dos livros “1981” e “É Tetra”. Acredita que futebol é mais que um jogo, mas o que acontece no campo é o que pauta todo o resto. Entender de tática e estratégia é (ou deveria ser) premissa, e não a diferença, para qualquer um que trabalha com o esporte. Contato: anunesrocha@gmail.com

Sobre o Blog

O blog se propõe a trazer análises e informações sobre futebol brasileiro e internacional, com enfoque na essência do jogo, mas também abrindo o leque para todas as abordagens possíveis sobre o esporte.