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André Rocha

O jeito brasileiro de ver o futebol está ultrapassado

André Rocha

13/03/2018 12h50

Foto: Arquivo Estado de São Paulo

Convocação de seleção brasileira sempre terá contestação de um ou outro nome. Imagine 1970 com redes sociais na polêmica convocação do Dadá Maravilha. Ou em 1958 Vicente Feola levando para Suécia um jogador com pernas tortas, outro de 17 anos que o futebol pouco ouvira falar. Ambos com problemas cognitivos e psicológicos, segundo um estudo da própria CBD. Outros tempos.

A lista de Tite merece críticas como qualquer outra. Aqui neste blog ela também teve seus alvos. Tudo legítimo e, na maioria, de críticas construtivas. O problema é o argumento de muita gente.

"Talisca joga no possante futebol turco". Ora bolas, perguntem ao mundo que liga é mais atraente aos olhos pelo futebol jogado: aqui ou lá? Sem contar que o meia joga hoje contra o Bayern de Munique pelas oitavas de final da Liga dos Campeões. Muito provavelmente a trajetória do Besiktas termina nesta partida, mas ultrapassou a fase de grupos como líder de uma chave com Porto e Monaco. Será que algum time brasileiro conseguiria?

"Willian José, aquele do São Paulo? Não pode vestir a camisa da seleção!" Talvez o do São Paulo não pudesse mesmo. Mas estamos em 2018 e o atacante joga na Real Sociedad, da primeira divisão da liga que conta com os dois times que venceram as últimas quatro edições da Liga dos Campeões. Com outro que foi tricampeão da Liga Europa e outro finalista da Champions por duas vezes. Sim, Willian enfrenta Barcelona, Real Madrid, Sevilla e Atlético de Madri. E marca gols contra eles.

Impressionante como em 2018 ainda há quem acredite que se o jogador mostra limitações no início da carreira ele não possa se desenvolver ao longo do tempo e funcionar melhor coletivamente. A tese muito brasileira de que no domínio de bola já é possível saber se um jogador é bom e vai vingar ou não é cada vez mais furada.

Assim como a de que o treinador é o que não atrapalha e tem que deixar os craques se entenderem em campo. Por isso Luan tem que ser convocado. Porque sim. Pelo que joga no Grêmio. Não importa se na seleção o sistema, o modelo e a dinâmica são completamente diferentes. Sem contar a possibilidade de uma equipe com Neymar, Coutinho, Willian, Gabriel Jesus e outros jogando em alto nível na Europa ter que se adequar ao melhor jogador da América do Sul. O mesmo que não rendeu absolutamente nada contra um Real Madrid em ritmo de treino na final do Mundial de Clubes. Este tempo já passou, convenhamos.

Antes de falar de futebol é preciso entender o contexto atual. O futebol nas ligas europeias, as melhores do mundo, tirou tempo e espaço do jogo. Tudo que o brasileiro sempre precisou para brilhar. Dois times em campo, jogando e deixando jogar. O mais talentoso ou com sorte vencia. Retranca era um amontoado de jogadores no próprio campo guardando a própria meta e o jeito de parar o craque era o pontapé muito tolerado nos campos em tempos remotos.

Hoje graças a treinadores como Guardiola, Mourinho, Klopp, Heynckes, Ancelotti e outros se joga em 30 metros de campo, com pressão no jogador que está com a bola e outros fazendo movimentos coletivos para fechar as linhas de passe. Tudo com intensidade máxima. Se antes o jogador era a referência da marcação, agora são bola e espaço.

"Ah, somos pentacampeões do mundo, não temos que aprender nada com ninguém". Tem certeza? O futebol de 1958, 1962, 1970, 1994 e até 2002 é passado, uma boa lembrança. Mas não muito diferente de um item de museu. Se Guardiola trata o seu Barcelona que deixou há seis anos como algo que hoje não é mais referência para o seu Manchester City, imagine o que aconteceu há décadas!

Não somos os atuais campeões do mundo. Nem de seleções, nem de clubes. Os maiores craques há dez anos são um português e um argentino. Dois times espanhois e um treinador catalão mandam no planeta bola. Temos a oferecer Neymar e outros talentos jogando na Europa e um campeonato pouco atraente por não durar o ano todo que só serve para observadores pescarem os jovens promissores e, palavras deles, transformá-los em jogadores. Ensiná-los a jogar. É ou não uma vergonha para nós?

O jeito brasileiro de olhar o futebol está ultrapassado e temos uma bela chance, com Tite, de atualizarmos os conceitos. Não gosta de como é praticado hoje e prefere os tempos dos times espaçados, campos gigantescos como Mineirão e Serra Dourado e um futebol mais lento e com espaço para o jogador dominar, pensar, respirar e então decidir o que fazer com a bola? Ótimo! Direito seu, legítimo. Mas vá para o Youtube, não falar sobre o que não conhece. Sobre um futebol que só existe no fantástico mundo da sua cabeça.

Nelson Rodrigues, este da foto que ilustra o post, foi um gênio. Da dramaturgia e da crônica, inclusive esportiva. Mas de um tempo em que o compromisso com o fato praticamente inexistia. Ele oferecia uma versão deliciosa dos acontecimentos. Alimentava o imaginário popular. Mas também inventava monstros como a truculência dos crueis alemães, italianos, ingleses; a catimba dos desonestos argentinos e uruguaios. O Brasil que no futebol só perdia para si mesmo e quando reconhecia o valor no outro era por "complexo de vira-latas". Mas do jogo Nelson sabia bem pouco. Ou quase nada. Não dá para resgatar esse espírito quase meio século depois. Já passou, como sua inseparável máquina de escrever.

Se o futebol brasileiro quer ser competitivo tem que criar a sua versão dentro do contexto atual. Não precisa copiar, mas entender como funciona e buscar saídas. Imaginar que temos que voltar ao estilo dos 1970 e doutrinar o resto do planeta é delírio. O mesmo para "soluções" como tirar um jogador de cada lado u aumentar a dimensão dos gramados para abrir espaços. Como se o mundo todo, inclusive Alemanha e Espanha, os últimos vencedores das Copas, estivessem sentido falta de alguma coisa. Ou seja, se não estamos vencendo vamos mudar as regras do jogo. Por favor, né?

Quer um exemplo prático do nosso atraso? O Atlético Mineiro de Cuca ganhou a Libertadores em 2013 sofrendo e dependendo de Victor nos pênaltis bem mais do que deveria pela qualidade de seus jogadores, especialmente Ronaldinho Gaúcho. Mas era um time anacrônico: espaçado, com perseguições individuais, dois volantes marcadores e dependente do talento de seu quarteto ofensivo e de jogadas ensaiadas.

Às duras penas conseguiu o título do continente, mas quando chegou ao Mundial de Clubes a realidade veio com requintes de crueldade: passeio do Raja Casablanca deitando e rolando na lentidão e nos espaços entre os setores da equipe brasileira que achou que venceria na camisa e na presença do Bola de Ouro 2004/2005. O campeão de Marrocos, país sede do torneio, atropelou jogando futebol atual. Depois todos foram pedir fotos do camisa dez derrotado em campo. Que deve ter agradecido a Deus por não encarar o Bayern de Munique comandado por Guardiola.

Nossos dogmas, crendices e análises focando apenas o individual do jogo não cabem mais. O jogo evoluiu, ficou mais complexo. O melhor jeito de avançar é reconhecer que ficamos para trás. A Copa do Mundo será um bom exercício de humildade. Ainda que o Brasil de Tite volte com o hexa.

 

Sobre o Autor

André Rocha é jornalista, carioca e blogueiro do UOL. Trabalhou também para Globoesporte.com, Lance, ESPN Brasil, Esporte Interativo e Editora Grande Área. Coautor dos livros “1981” e “É Tetra”. Acredita que futebol é mais que um jogo, mas o que acontece no campo é o que pauta todo o resto. Entender de tática e estratégia é (ou deveria ser) premissa, e não a diferença, para qualquer um que trabalha com o esporte. Contato: anunesrocha@gmail.com

Sobre o Blog

O blog se propõe a trazer análises e informações sobre futebol brasileiro e internacional, com enfoque na essência do jogo, mas também abrindo o leque para todas as abordagens possíveis sobre o esporte.