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André Rocha

As diferenças entre ferrolho, catenaccio, retranca e linha de handebol

André Rocha

21/06/2018 01h00

Como previsto neste blog antes mesmo da bola rolar na Rússia, a Copa do Mundo de 2018 vem trazendo nesta primeira rodada da fase de grupos e especialmente nas atuações da Islândia no empate com a Argentina por 1 a 1 e na do Irã, derrotada pela Espanha por 1 a 0, a marca de sistemas defensivos sólidos e organizados numa linha que costuma proteger a área com cinco, seis ou até sete jogadores.

Nas redes sociais e nos debates em TV, internet, rádio e na mesa de bar surge logo o termo "retranca", normalmente reduzindo a estratégia das seleções que se fecham como um amontoado de jogadores guardando "covardemente" a própria meta.

Muito comum também recorrem a termos que orbitam o "glossário" habitual do futebol como "ferrolho" e "catenaccio" como sinônimos de estilos que privilegiam o trabalho defensivo. Como se fosse tudo a mesma coisa.

Não é. Até porque são práticas de épocas diferentes, com todas as suas particularidades. Seu "zeitgeist", ou espírito do tempo. São de uma época que não volta mais, ainda que o legado de todos os eles sempre ajude a construir o que se pratica hoje.

Tudo começa no reconhecimento de que se um time tentar encarar o adversário de frente sendo inferior tecnicamente as chances de ser derrotado e até goleado aumentam exponencialmente. Jogar mal e deixa o oponente à vontade é um convite ao fracasso.

Não foi exatamente o que pensou Karl Rappan ao chegar ao Servette no final dos anos 1920 para ser jogador-técnico. Sua preocupação maior era a questão física, já que seu time era semiprofissional e iria enfrentar adversários totalmente dedicados ao esporte. Mas a questão técnica também era importante.

Por isso criou o "verrou", ou "ferrolho". Nada mais era que uma evolução diferente do 2-3-5 para o WM (3-2-2-3). Um defensor protegendo a linha de três zagueiros, um centro-médio à frente de dois meias, dois pontas e um centroavante. Uma espécie de 4-3-3 com líbero. Encaixando no sistema rival. Cada um marca o seu e um homem sobra. Com o olhar de hoje, nada demais.

O "ferrolho" da Suíça em 1938 que chamou atenção pela solidez defensiva. Basicamente um 4-3-3 com líbero (Tactical Pad).

Mas chamou atenção na época especialmente na Copa do Mundo de 1938, a última antes da Segunda Guerra Mundial. A Suíça de Rappan venceu a Inglaterra em um amistoso pré-Copa e na estreia superou os alemães. Acabou vencido pelos húngaros e voltaram para casa. Marcaram época, porém.

E o que marcaria o conceito de "retranca" também estava lá na Suíça. Não exatamente com quantos se defende, mas como se ataca. O time poderia jogar em qualquer sistema, mas se atacasse apenas em velocidade com bolas longas para seus atacantes, chegando com apenas três ou quatro na área adversária e marcasse poucos gols já era chamado de time "covarde".

Como o Fluminense nos anos 1950, cujo grande destaque era o goleiro Castilho e vencia seus jogos por placares magros em tempos de gols em profusão. Por isso ganhou o apelido de "timinho". Mas vencia.

Multicampeão foi Helenio Herrera, argentino que comandou a Internazionale de 1960 a 1968, mas com passagens pelas seleções de Espanha e Itália. O treinador que atualizou o "catenaccio", a porta trancada. Estratégia que teve seu primeiro ensaio no "Método" de Vittorio Pozzo, bicampeão mundial de 1934 e 1938 pela Itália e a consolidação com Nereo Rocco, vice-campeão italiano de 1948 com o Triestina e que depois se consagraria no Milan dos anos 1960.

Herrera contestava o rótulo defensivista para sua estratégia que adaptou o volante Picchi como líbero para que Fachetti tivesse liberdade para atacar pela esquerda como o "terzino fluidificante". O armador espanhol Luís Suárez, chamado de "regista", acionava o trio de ataque em contragolpes. O conceito ofensivo de Herrera não podia ser mais atual: poucos toques na bola e velocidade. "Se você toca verticalmente e perde a bola, o prejuízo é pequeno. Mas se perder tocando horizontalmente pode levar um gol", explicava.

Helenio Herrera armou o "catenaccio" na Internazionale com líbero para permitir que Facchetti tivesse liberdade para apoiar pela esquerda. Time de toques rápidos e velocidade no ritmo do "regista" Luis Suárez (Tactical Pad).

A estratégia da Itália campeã mundial em 1982 que eliminou o lendário Brasil de Telê Santana até hoje é chamada erroneamente de "catenaccio". A seleção do treinador Enzo Bearzot praticava mesmo o "gioco". Com o líbero Scirea, o "terzino" Cabrini, o "regista" Antognoni e Bruno Conti, o "ala tornante", ou o ponta que retorna para transformar o 4-3-3 em 4-4-2. A proposta, porém, embora reativa contra equipes superiores tecnicamente, valorizava mais a bola e tinha alguma preocupação estética, com o jogar. A marcação era mista, por zona ou encaixe para a maioria dos jogadores e individual com o grande talento do adversário. Quem não lembra de Gentile perseguindo Zico e Maradona por todo o campo?

No Brasil, as retrancas sempre foram tratadas como o único recurso para o time inferior. Algo inconcebível para times grandes. Os quatro da defesa mais o volante, o meia-armador e o "falso ponta" recuados para que a equipe atacasse apenas com três homens. Viviam de uma "bola vadia" para vencer. Era o que faziam os times médios e pequenos contra esquadrões como o Santos de Pelé, o Botafogo de Garrincha, a Academia do Palmeiras, o Cruzeiro de Tostão, o Flamengo de Zico, entre outros tantos.

Milton Buzzeto, Paulinho de Almeida e Pinheiro foram "retranqueiros" célebres, comandando times pequenos que se fechavam e tomavam pontos dos grandes. Muitas vezes apelando para faltas violentas e esburacando os gramados para dificultar a vida das equipes mais técnicas.

Há, porém, uma diferença clara entre os métodos citados e as atuais linhas "de handebol". Enquanto o "ferrolho", o "catenaccio" e a retranca tinham o jogador adversário como referência com perseguições individuais, o trabalho sem a bola na atualidade, na grande maioria dos casos, procura fechar espaços de acordo com a região em que está a bola. Marcação por zona.

O "marco zero" surgiu por necessidade. José Mourinho perdeu Thiago Motta expulso no Camp Nou contra o Barcelona de Pep Guardiola na semifinal da Liga dos Campeões 2009/10 precisando administrar uma vantagem de dois gols, mas que pela vitória por 3 a 1 da Internazionale em Milão podia escapar com uma derrota por 2 a 0.

Com a desvantagem numérica, Mourinho abriu mão totalmente da posse de bola e da possibilidade de contra-atacar e plantou seu time na frente da área. Mas não de forma desordenada. Criou uma linha de seis ou sete jogadores para ao mesmo tempo negar espaços para as arrancadas de Lionel Messi e também as infiltrações por dentro, mas sem deixar de cuidar dos jogadores abertos que eram um dos segredos do esquadrão blaugrana para abrir as defesas adversárias.

José Mourinho armou a "linha de handebol" com sete homens, inclusive Samuel Eto'o protegendo a própria área do Barcelona de Guardiola. E o futebol começou a mudar. (Reprodução ESPN)

Sofreu apenas um gol e ainda viu o Barça apelar para Piqué como centroavante nos minutos finais. Já que não havia como infiltrar, a saída foi levantar bolas na área. Mourinho tirou o Barça de seu conforto, alcançou uma classificação heroica para a final da Liga dos Campeões que terminaria em título. O último da Champions do clube e do treinador. Mais que isto, sua resposta a Guardiola mudou o futebol mundial.

Alguns treinadores tentaram copiar os conceitos do catalão, mas a maioria, quando necessário, assimilou mesmo o "ônibus" de Mourinho. Já que o jogo passou a ser feito em 20, 30 metros, o time concentra o maior número de corpos nos espaços certos perto da própria área para impedir que o adversário entre. Como no handebol.

O desenho tático pode variar. Uma linha de quatro defensores pode ganhar mais dois pelos lados e passar a ser formada, na prática, por seis homens. Ou sete, se a linha for de cinco ganhando mais um zagueiro. Mas dois jogadores para impedir os chutes de fora da área com liberdade e um único atacante.

Mourinho tirou a vergonha e colocou a inteligência na retranca. Junto com outros treinadores foram aprimorando os conceitos ao longo do tempo. Sem deslealdade ou jogo sujo, apenas posicionamento e concentração. É claro que no mais alto nível fica difícil competir com equipes mais versáteis e talentosas – e Mourinho vem sofrendo com isso nos últimos anos.

Mas para confrontos como o dos iranianos comandados por Carlos Queiroz diante dos favoritos espanhois é uma estratégia legítima e até lógica. Embora não agrade as retinas deste que escreve, muitos conseguem até enxergar beleza na prática.

Irã com seis jogadores protegendo a própria área: quatro defensores e os dois pontas voltando como laterais para conter a Espanha (reprodução TV Globo).

Só não é tudo igual. As linhas de handebol podem até ser consideradas uma evolução de "ferrolho", "catenaccio" e "retranca". Mas as práticas e os princípios são bem distintos. Basta ter olhos de ver.

 

 

Sobre o Autor

André Rocha é jornalista, carioca e blogueiro do UOL. Trabalhou também para Globoesporte.com, Lance, ESPN Brasil, Esporte Interativo e Editora Grande Área. Coautor dos livros “1981” e “É Tetra”. Acredita que futebol é mais que um jogo, mas o que acontece no campo é o que pauta todo o resto. Entender de tática e estratégia é (ou deveria ser) premissa, e não a diferença, para qualquer um que trabalha com o esporte. Contato: anunesrocha@gmail.com

Sobre o Blog

O blog se propõe a trazer análises e informações sobre futebol brasileiro e internacional, com enfoque na essência do jogo, mas também abrindo o leque para todas as abordagens possíveis sobre o esporte.