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André Rocha

Nosso futebol é medroso porque o Brasil sempre tem algo a temer

André Rocha

17/09/2018 00h51

"Bola para o mato que o jogo é de campeonato!" Um dos jargões mais conhecidos do futebol do Brasil, com origem na várzea, traz um conceito básico do nosso jeito de ver o esporte: se vale pontos e taça, a ordem é minimizar os riscos. Para que tentar sair tocando e errar?

Um paradoxo no país cinco vezes campeão mundial, que ainda carrega para muitos o rótulo de "jogo bonito". O detalhe é que por aqui sempre houve uma distinção entre talentosos e os esforçados que deviam correr para os craques decidirem. Os "carregadores de piano" que faziam o serviço sujo, mas entregavam a bola limpinha para quem sabe. No sufoco é chutão para frente mesmo!

Em três momentos da história da seleção brasileira, o medo de ficar para trás foi uma alavanca. Em 1958, a influência dos húngaros na Copa anterior trouxe a linha de quatro na defesa. Somado ao recuo de Zagallo pela esquerda no 4-3-3 que ficou mais nítido quatro anos depois no Mundial do Chile. Cuidados defensivos para o talento de Didi, Garrincha e Pelé decidir na frente.

Mesma lógica de 1970 depois do massacre físico e tático da Copa de 1966 na Inglaterra. O raciocínio básico de Zagallo e comissão técnica era: "se igualarmos na força e na organização venceremos na técnica". No México, a seleção até hoje considerada a maior de todos os tempos se fechou com todos atrás da linha da bola e matou a grande maioria dos oponentes no segundo tempo em contragolpes velozes.

Depois da traumática Copa de 1982, o mote que encontrou seu ápice em 1994: "vamos fechar a casinha porque se não levarmos gol os nossos craques desequilibram". Bebeto e Romário nos Estados Unidos. Mas também o trio Ronaldo-Rivaldo-Ronaldinho em 2002 no último título mundial. Decidindo para o Brasil de Felipão com três zagueiros e dois volantes. Sempre a cautela, o pensamento conservador. Fazer o simples no coletivo para que o brilho individual faça a diferença. Não arrisca, só vai na boa.

Lógico que há brilhantes exceções, especialmente nos clubes. Times arrojados, ofensivos como o "Expresso da Vitória" do Vasco nos anos 1940, Santos de Pelé, o Botafogo de Garrincha, Cruzeiro de Tostão, o Palmeiras da Academia, o Flamengo de Zico, o São Paulo de Telê Santana e outros. Mas a linha mestra sempre foi "na dúvida, toca pro talento que ele decide".

Hoje vivemos um dilema na execução desta ideia de futebol. Porque o esporte evoluiu demais nos últimos dez anos, na organização para atacar e defender. Pep Guardiola levou a proposta ofensiva a outro patamar, José Mourinho respondeu com a radicalização do trabalho de compactar setores para proteger sua meta.

Por conta da nossa tradição de acreditar no talento, olhamos com atenção mais para a prática do treinador português. A modernização do "fechar a casinha". Ser atacado durante a maior parte do tempo virou "saber sofrer". De Guardiola pegamos a marcação por pressão no campo de ataque. Nenhuma novidade, já que os times do sul têm essa reação após a perda da bola em sua cultura futebolística influenciada justamente pelos europeus.

E na hora de atacar? Ainda acreditamos que é questão de entregar a bola aos mais talentosos. Só que há dois problemas: o primeiro é que os melhores vão para a Europa cada vez mais cedo. O segundo é a relação espaço/tempo. Pela aproximação dos setores e por conta da pressão que o jogador com a bola recebe assim que a recebe é obrigação decidir certo e rápido.

Driblar? Só no local e no momento exatos. De preferência bem perto ou mesmo dentro da área adversária e com apenas um jogador pela frente. Algo cada vez mais raro. Porque para chegar neste ponto é preciso construir a jogada  com precisão e velocidade. Desde a defesa. Toca, se desloca, arrasta a marcação. Ilude com movimentos coletivos, não necessariamente com a finta, a ginga. Pensar no todo e não segmentando os que defendem e atacam. Difícil mudar uma mentalidade de décadas e que foi vencedora tantas vezes.

Mais fácil sair jogando com ligações diretas, tentar ganhar o rebote e avançar alguns metros já no campo adversário. Sem correr o risco de perder a bola perto da própria meta por conta de um passe errado. Minimizar erros, lembra? Por isso vez ou outro ouvimos dos treinadores uma espécie de confissão: "o perigo é quando temos a bola".

Porque somos medrosos. No futebol e até como nação. Basta olhar a nossa história, quase sempre guiada por temores: da corte portuguesa, da insurreição mineira, do comunismo, do varguismo, da ditadura, do golpe, do imperialismo americano, da volta do partido x ou y ao poder, do fascismo. Votamos por medo, vamos às ruas com ele. Vivemos no susto. Com nossos fantasmas reais ou fictícios.

O futebol é mero reflexo. Por isso os gols estão cada vez mais raros, os jogos mais parelhos definidos em uma bola. Apenas o gol de Barcos para o Cruzeiro nas semifinais da Copa do Brasil, só os dois de Vasco 1×1 Flamengo nos três clássicos estaduais da 25ª rodada do Brasileiro. Poucos se arriscam e quando o fazem viram alvos. Dos rivais, das críticas. Para que mudar? É melhor "trabalhar quietinho", sem assumir favoritismo. Respeitando todos os adversários. Até temendo. Deixando a bola para eles e ganhando no erro. Mais confortável ser zebra, até para diminuir o pavor da derrota.

O Brasil sempre tem algo a temer. A esperança é que em algum momento desperte o medo de matar a paixão do torcedor e, como consequência, seu interesse por um jogo tão pragmático e que entrega quase nada além do resultado final. Um cenário que já pareceu mais distante.

 

 

 

Sobre o Autor

André Rocha é jornalista, carioca e blogueiro do UOL. Trabalhou também para Globoesporte.com, Lance, ESPN Brasil, Esporte Interativo e Editora Grande Área. Coautor dos livros “1981” e “É Tetra”. Acredita que futebol é mais que um jogo, mas o que acontece no campo é o que pauta todo o resto. Entender de tática e estratégia é (ou deveria ser) premissa, e não a diferença, para qualquer um que trabalha com o esporte. Contato: anunesrocha@gmail.com

Sobre o Blog

O blog se propõe a trazer análises e informações sobre futebol brasileiro e internacional, com enfoque na essência do jogo, mas também abrindo o leque para todas as abordagens possíveis sobre o esporte.