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André Rocha

Para que serve o "estive lá" do ex-boleiro se o futebol não é mais o mesmo?

André Rocha

18/01/2019 07h01

O desafio dos dez anos (#10YearsChallenge) movimenta as redes sociais há dias, com famosos e anônimos postando fotos recentes em comparação a 2009. E se pudéssemos fazer o mesmo com o futebol, como seria?

Em 2009, o Barcelona de Pep Guardiola ainda estava em sua primeira temporada, embora muito bem sucedida com a tríplice coroa. Mourinho não tinha adotado as linhas de handebol na defesa da Internazionale como resposta defensiva à proposta do catalão. Jurgen Klopp, também em seu primeiro ano no Borussia Dortmund, apenas ensaiava o "gegenpressing" e o estilo agressivo, com o pé cravado no acelerador, que vem marcando sua carreira.

No Brasil, o jogo era ainda mais espaçado e lento, menos intenso. Neymar era só um menino marcando seus primeiros gols como profissional no Santos. Dunga vivia na seleção brasileira o seu melhor momento, com uma posse de bola às vezes burocrática, mas quando chegava ao trio Kaká-Robinho-Luís Fabiano com espaços para acelerar unia beleza e eficiência. Júlio César era o melhor goleiro do mundo.

Tite comandava o Internacional no ano do seu centenário. Campeão gaúcho, vice da Copa do Brasil. Depois venceria tudo com o Corinthians e, mesmo assim, em 2014 foi para a Europa estudar, buscar reciclagem. Unir experiência e novos conceitos. Deu o salto na carreira para realizar o sonho de comandar o Brasil numa Copa do Mundo. Pode chegar à segunda.

Além disso, as medidas dos gramados ainda não estavam padronizadas em 105 m x 68m. Não existia o VAR, nem a maioria das novas orientações da FIFA que norteiam as arbitragens. A bola também era diferente. Ou seja, era outro futebol se não reduzirmos o esporte ao clichê dos "onze homens correndo atrás de uma bola".

Agora imaginemos as diferenças em relação ao que se jogava nas décadas anteriores. No século passado. Sem a internet com banda larga e Wi-Fi para popularizá-la e virar o mundo pelo avesso. Algo que os jovens hoje sequer conseguem imaginar. Um recurso que mudou tudo também no futebol. Na análise, no jornalismo, na formação e preparação de atletas, na relação com a mídia.

Com tudo isso, a pergunta simples e direta é: objetivamente, qual a vantagem de quem jogou nos anos 1970, 80, 90 ou mesmo na primeira metade da década de 2000 em relação aos jornalistas na hora de analisar uma partida em 2019?

A resposta é óbvia: nenhuma. Ou só contar os "causos" de sua época. Ou fazer o torcedor que viu jogar deixar de zapear e parar no canal de esportes para vê-lo. Porque simplesmente não pode existir vantagem da prática se o jogo – intensidade, espaços, dinâmica, arbitragem, medidas dos campos, bola, material esportivo, etc. – é completamente diferente.

Por isso soa cada vez mais ridícula a falácia lógica do apelo à autoridade. Algo que normalmente surge quando o ex-boleiro não tem mais argumentos para debater e apela para o surrado, mas ainda tratado como carta na manga, "eu estive lá". E daí? Esteve quando? Para que serve esta experiência hoje se tudo mudou?

São poucos os que jogaram e hoje comentam futebol, falando ou escrevendo, que saem dos clichês e análises baseadas no senso comum. Tostão é a melhor das exceções. Vez ou outra pode dar vazão a um certo saudosismo, especialmente em relação à seleção brasileira de 1970, mas seus textos revelam um observador humilde, que procura estar atento às transformações do esporte. Valoriza o novo e respeita a análise de quem não jogou profissionalmente.

Infelizmente a grande maioria se comporta, de forma velada ou não, como Vanderlei Luxemburgo: "nada mudou, nós fazíamos o mesmo há quatro décadas, mas com nomes diferentes". Uma visão estanque, muito diferente da dinâmica do tempo. Em muitos casos para manter o status quo. Para continuar relevante. Felizmente alguns se tocam e buscam a atualização. Outros preferem alimentar a saudade do passado e agradar o público apenas da sua faixa etária em diante.

É claro que também há jornalistas com o mesmo perfil. O texto não é uma defesa de classe, muito menos de reserva de mercado. A presença de quem praticou o esporte é importante, contanto que ele não olhe para o campo hoje e veja o jogo do seu tempo. Uma ilusão de ótica.

Instagram, Twitter e Facebook seguem com muitas fotos de 2019 e 2009. Quem pensa que nada muda deveria fazer essa experiência. Certamente levaria um susto. Ou uma boa surpresa para fazer a cabeça sair do passado que não volta. Esteve lá? Agora não está mais.

Falcão disse que parar é a "primeira morte" do jogador. Se a volta ao esporte é pela mídia, que a nova vida seja feliz, curiosa, com brilho nos olhos. Sem a amargura de quem sempre vê tudo no mesmo lugar. Que bom que não é assim.

Sobre o Autor

André Rocha é jornalista, carioca e blogueiro do UOL. Trabalhou também para Globoesporte.com, Lance, ESPN Brasil, Esporte Interativo e Editora Grande Área. Coautor dos livros “1981” e “É Tetra”. Acredita que futebol é mais que um jogo, mas o que acontece no campo é o que pauta todo o resto. Entender de tática e estratégia é (ou deveria ser) premissa, e não a diferença, para qualquer um que trabalha com o esporte. Contato: anunesrocha@gmail.com

Sobre o Blog

O blog se propõe a trazer análises e informações sobre futebol brasileiro e internacional, com enfoque na essência do jogo, mas também abrindo o leque para todas as abordagens possíveis sobre o esporte.