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André Rocha

Um pouco de Leovegildo Júnior para falar de Arthur e laterais por dentro

André Rocha

20/06/2019 08h10

Bastou a seleção brasileira empatar com a Venezuela em Salvador para as cornetas do apocalipse começarem a ecoar e, como sempre, o resultado gerar uma caça às bruxas na procura de culpados. Um pouco mais de eficiência nas finalizações ou o VAR deixando passar um dos gols anulados e talvez, até pela fase terrível da Argentina, o desempenho, de fato, insuficiente fosse relativizado.

Mas entre as muitas críticas é possível detectar uma justa e outra nem tanto. A primeira é a falta de meio-campistas de área a área com perfil organizador para qualificar a saída de bola, acionar as peças mais ofensivas e eventualmente aparecer na área para concluir. Falta intensidade a Arthur. Também momentos de um jogo mais vertical. Fernandinho se adaptou bem à função de primeiro volante e Allan tem características mais parecidas com as de Paulinho. O fato é que Renato Augusto, por incrível que pareça, está fazendo falta. O camisa oito autêntico da melhor fase recente da seleção.

A outra é sobre os laterais atuando por dentro, como construtores. Na inquisição da falta de vitória que quase sempre se mistura com saudosismo, muitos que observaram Daniel Alves e Filipe Luís "afunilando" o jogo apontaram para o passado, dizendo que nos "bons tempos" do futebol brasileiro o lateral abria o campo e chegava ao fundo para cruzar. Recordações de Cafu, Roberto Carlos, Jorginho, Leandro, Júnior…

Opa! Aí está um equívoco no resgate histórico que vale ser pinçado para abordar as duas questões propostas acima. Leovegildo Júnior era fã de Marinho Chagas. Ambos laterais esquerdos destros que atacavam, sim, por dentro. Com pés de meio-campistas e criando superioridade numérica no trabalho entre as intermediárias. Na Copa de 1982, Júnior se juntava a Cerezo, Falcão, Sócrates e Zico e tinha Éder para abrir o campo pela esquerda. Leandro à direita.

Entrando em diagonal, Júnior marcou um golaço contra a Argentina, completando passe primoroso de Zico. Da esquerda para dentro iniciou a jogada que terminaria no gol de Falcão contra a Itália, o último brasileiro na campanha do Mundial na Espanha. O problema do  camisa seis não era atacar pelo meio, mas os erros de posicionamento defensivo que, inclusive, ocasionaram dois gols de Paolo Rossi no fatídico 5 de julho – o primeiro permitindo o centroavante italiano infiltrar entre ele o zagueiro Luisinho, o derradeiro errando na tática do impedimento.

O problema de Daniel Alves e Filipe Luís é infiltrar pouco, não aparecer como elemento surpresa por dentro quando os ponteiros Richarlison, David Neres, Everton e até Gabriel Jesus voltando a atuar pelo lado abrem o campo. Questão de sincronia na proposta nova de Tite que ainda tem os movimentos de Firmino saindo do centro do ataque para abrir espaços que não estão sendo preenchidos pelos companheiros de ataque, incluindo Philippe Coutinho.

Voltando ao Júnior, a mudança de função na segunda metade da carreira, de 1984 a 1993, também vale a lembrança para retornarmos ao tema Arthur e a carência de articuladores mais recuados. No futebol italiano e na seleção brasileira, incluindo a Copa de 1986, Júnior era um "regista". Coordenava todas as etapas de construção de jogo e ainda tinha o "plus" da bola parada. Cobrava escanteios da direita com pé esquerdo e da esquerda com o destro.

Retornou ao Brasil em meados de 1989. Justamente o período da virada no conceito de meio-campistas no Brasil. Dividindo a função entre volantes protetores da defesa e meias ofensivos. Necessidade criada por ele mesmo quando lateral no Flamengo, que primeiro teve Andrade e Carpegiani em 1980 e depois Vítor entrando no lugar do meio-campista que virou treinador em 1981. Tudo para dar liberdade aos "alas".

O "elo perdido" tinha sido Geovani, no Vasco. Craque e artilheiro do titulo mundial de juniores (sub-20) em 1983, famoso pelas cobranças de pênaltis impecáveis e personalíssimas. Mas que deve ser lembrado como o último camisa oito inspirado em Gérson e Didi. Com os lançamentos longos e precisos como a grande marca de seu estilo.

O melhor jogador do país em 1988, ajudado por uma boa sacada de Sebastião Lazaroni no Vasco: Geovani não precisava se sacrificar no auxílio ao volante Zé do Carmo na marcação. Henrique, outro volante, fazia o "serviço sujo". Quando o time cruzmaltino recuperava a bola, Geovani recuava para armar e Henrique o "ultrapassava", se juntando a Bismarck, Vivinho e Romário na frente.

Geovani e Lazaroni foram para a seleção e o novo mapa do meio-campo excluiu naturalmente o meia. Na virada para o sistema 3-5-2, o meia não tinha pegada para jogar à frente da defesa, nem dinâmica para auxiliar os alas e ainda entrar na área se juntando à dupla de ataque. Silas, depois Alemão, e Valdo foram os titulares no ciclo que terminou no fracasso da Copa na Itália.

O meio-campista ainda viveria bons momentos no próprio Vasco no início dos anos 1990, porém dentro de outras configurações: em 1992, na boa campanha do clube no Brasileiro, como um meia à frente do volante Luisinho e depois ainda mais adiantado com a entrada de Leandro Ávila na proteção da retaguarda.  Mas sempre neste conflito entre ser volante ou meia no típico 4-2-2-2 da época no país.

Mesmo problema de Júnior no Flamengo. No título da Copa do Brasil de 1990 com Jair Pereira ele era uma espécie de "carrillero", ou volante pela direita num losango: Uidemar plantado, Junior e Zinho pelos lados e Bobô ou Djalminha fazendo a ligação com Renato Portaluppi e Gaúcho. Mas foi no ano seguinte que veio a ideia que encaixaria perfeitamente o "Maestro" para o fecho de ouro de sua carreira.

O 4-1-4-1 montado por Vanderlei Luxemburgo em 1991 que serviu de base para Carlinhos organizar a equipe campeã carioca daquele ano e do Brasileiro na temporada seguinte. A chave era o recuo dos pontas Paulo Nunes e Nélio acompanhando os laterais adversários. Isso permitia que os laterais rubro-negros, Charles Guerreiro e Piá, marcassem mais por dentro e ajudassem o volante Uidemar na proteção dos zagueiros Júnior Baiano e Wilson Gottardo.

Júnior, então, ficava livre para conduzir a equipe. Recuava atrás de Uidemar para organizar a saída de bola, acionava os ponteiros em velocidade ou o próprio camisa cinco fazia os cruzamentos para o centroavante Gaúcho. Com bola parada ou rolando. Quando não aparecia na frente para concluir, como nos gols marcados nas finais das conquistas estadual e nacional. Meio-campista completo.

Exatamente o que vem faltando ao futebol brasileiro. Por incrível que pareça o último organizador foi Dunga, já em 1990 e também nas duas Copas seguintes. Volante marcador, porém com bom passe. Na sequência os grandes armadores eram meias típicos: Djalminha, Ricardinho, Juninho Pernambucano…Kléberson foi a solução em 2002 porque era dinâmico, tinha bom passe e não precisava ser tão cerebral porque o jogo fluía mais com Cafu e Roberto Carlos abertos e Ronaldinho Gaúcho armando para Rivaldo e Ronaldo.

Agora há um vazio, que ainda pode ser preenchido por Arthur se houver evolução no Barcelona. Lucas Silva, hoje no Cruzeiro, foi uma esperança até "flopar" na Europa. O Grêmio tenta afirmar Matheus Henrique na mesma função.  Talvez o erro seja usar como referência o espanhol Xavi Hernández. Gênio do jogo de posição do Barcelona e da Espanha, mas com características muito específicas, que combinavam com as de Iniesta formando uma dupla quase perfeita de armadores. Na cultura brasileira acaba sendo visto como "armandinho" ou "pica-couve".

Melhor mirar o que foi Geovani. Ou Leovegildo Júnior, antes lateral que jogava por dentro e depois o meio-campista de área a área. Mas pensando nas necessidades e no contexto de 2019. Sem superestimar o passado e demonizar o presente que é só mais complexo e o futebol brasileiro precisa, enfim, se adequar no mais alto nível para voltar a vencer.

Sobre o Autor

André Rocha é jornalista, carioca e blogueiro do UOL. Trabalhou também para Globoesporte.com, Lance, ESPN Brasil, Esporte Interativo e Editora Grande Área. Coautor dos livros “1981” e “É Tetra”. Acredita que futebol é mais que um jogo, mas o que acontece no campo é o que pauta todo o resto. Entender de tática e estratégia é (ou deveria ser) premissa, e não a diferença, para qualquer um que trabalha com o esporte. Contato: anunesrocha@gmail.com

Sobre o Blog

O blog se propõe a trazer análises e informações sobre futebol brasileiro e internacional, com enfoque na essência do jogo, mas também abrindo o leque para todas as abordagens possíveis sobre o esporte.