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André Rocha

Como o "passe falso" de Dani Alves para Messi sintetiza o futebol da década

André Rocha

10/07/2019 08h26

Foto: AFP

– Por exemplo, eu tocava muito um passe que o Guardiola não gosta. Até hoje, eu acho que esse passe não progride, que é o passe da lateral ao ponta. Esse é um "passe falso". Bola para extremo atacar e não perder a jogada é de meio para lateral e de lateral para meio. E, às vezes, eu conectava muito esse passe para o Messi. O Guardiola reclamava comigo. Eu respondia: "Não, mister, me desculpa. Mas se o Messi passar dois minutos sem tocar na bola, ele desconecta do jogo. Como o Messi tem que estar preparado para definir o jogo para a gente, então eu vou conectar ele no jogo".Ele falou: 'Tem razão!"

Este foi o trecho que mais chamou atenção da participação de Daniel Alves no programa "Bem, Amigos!" do Sportv. O destaque, obviamente, foi para a inteligência do lateral na fantástica parceria com o gênio argentino – até hoje é o jogador que mais serviu passes para gols de Messi – e também a moral que o atleta conquistou com um dos melhores treinadores da história do futebol mundial.

Mas se contextualizarmos o que foi dito é possível sintetizar todo o futebol em alto nível disputado nesta década. Ou desde 2008, no início do trabalho de Pep Guardiola no Barcelona. A época em que provavelmente aconteceu o diálogo entre atleta e técnico.

Porque, a rigor, Messi só foi ponta direita sob comando do catalão na primeira temporada da parceria que transformou o jogo para sempre. Formando o trio de ataque com Samuel Eto'o e Thierry Henry. Já dentro do jogo de posição, ou localização, que se transformaria na grande marca de Pep e a maior influência dele entre seus pares.

Resumindo bastante, seria um modelo em que o posicionamento dos jogadores é mais importante do que aquilo que realizam quando têm a bola. Nas palavras de Johan Cruyff, mentor de Guardiola, "se cada jogador tem a bola por, no máximo, três minutos em uma partida é porque o importante é o que ele faz nos outros 87".

Messi era ponteiro pela direita, e o ponta no jogo de posição na maior parte do tempo tem como principal atribuição ficar aberto e dar amplitude aos ataques. Abrir o campo. Essa função também pode ser do lateral, e Dani Alves a executou algumas vezes com Guardiola. Henry fazia o mesmo do lado oposto. Cada um em sua posição e ganhando liberdade de movimentação ao se aproximar da área adversária para decidir. Confira AQUI uma explicação detalhada em vídeo do atacante francês aposentado, hoje também treinador.

A questão é que dependendo das circunstâncias da partida um ponteiro pode ficar algum tempo sem tocar na bola. Porque está bem marcado ou o jogo fluindo melhor no outro flanco. Por isso Daniel sentia necessidade de "conectar" Messi.

Por que o passe do lateral para o ponta é considerado "falso"? No jogo de posição, as triangulações são fundamentais. O atleta com a bola deve ter uma opção de passe para o lado, para trás ou em profundidade. Sempre buscando o homem livre. Para que a circulação da bola seja eficiente e mexa com a marcação adversária, ela deve se dar do lado para dentro e vice-versa. Naquele Barcelona, de Daniel Alves na lateral para Xavi no meio e deste para Messi na ponta. Para dominar de frente para o marcador, não de costas no caso do passe sair mais aberto. Conceito básico que vem desde o "rondo" no início dos treinos.

Talvez por isso Guardiola já na primeira temporada tenha trazido Messi para o centro do campo, como um misto de "enganche" tipicamente argentino e "falso nove", função que também foi de Cruyff na Holanda e no próprio Barça. O craque do time precisava mesmo ser mais participativo, tocar mais na bola e receber com liberdade entre a defesa e o meio-campo do adversário. Como o centro de articulação e decisão. Dialogando com Xavi e Iniesta, mas também com os atacantes infiltrando em diagonal. Ou partindo sozinho para desequilibrar.

A versão mais vencedora do Barcelona de Pep foi a primeira, ganhando a tríplice coroa. Mas a que é considerada a melhor pelo treinador, por jogadores e também por muitos jornalistas ao redor do mundo é a da temporada 2010/11. Com o modelo assimilado e amadurecido, Messi por dentro sintonizado no jogo e com os companheiros e os ponteiros Pedro e Villa cumprindo suas funções no jogo de posição quase à perfeição.

No massacre da final do Mundial de Clubes contra o Santos de Muricy Ramalho, já uma versão diferente, com Fábregas se juntando ao trio Xavi-Iniesta-Messi por dentro e Daniel Alves e Thiago Alcântara abrindo o campo. Outra atuação mágica, mas para este que escreve inferior à dos 3 a 1 sobre o Manchester United na final da Liga dos Campeões. Do melhor time que este que escreve viu jogar em mais de trinta anos.

Mas que mudou o esporte também por conta das transformações que causou nos rivais por necessidade de respostas competitivas. Da retranca com linhas chapadas, "de handebol", de José Mourinho na Internazionale, passando pelo ferrolho com contragolpe letal do Chelsea em 2012 até chegar à perfeição de Carlo Ancelotti no Real Madrid de "La Décima", impondo a Guardiola sua derrota mais emblemática, já no Bayern: 4 a 0 em Munique e a vaga perdida para a final continental. Com rigor tático sem a bola, mas muita velocidade e toques verticais nos contragolpes acionando Bale, Benzema e Cristiano Ronaldo, além da força da jogada aérea com bola parada de Sergio Ramos.

Um jogo mais adaptado à demanda da partida. O time merengue que Ancelotti entregaria a Zidane, que foi auxiliar do treinador italiano, depois de um "hiato" com Rafa Benítez, sabia jogar no campo de ataque e também recuando linhas e explorando os espaços às costas das defesas oponentes. Se necessário arrancava um gol "á forceps" numa falta ou escanteio. Um jogo mais intuitivo, baseado no talento e no controle mental, mas sabendo usar a força da camisa mais pesada do futebol mundial para se impor e faturar quatro Champions em cinco temporadas.

Padrão e intuição que norteiam o trabalho de Jurgen Klopp no Liverpool. Derrotado pelo Real de Zidane em 2018, mas garantindo o título da Champions com pragmatismo na vitória sobre o Tottenham na final inglesa disputada no Wanda Metropolitano, em Madrid. Pressão no campo de ataque, aceleração e intensidade máximas, mas também sabendo criar espaços na frente e amassando o adversário psicologicamente. Uma fórmula que funciona muito bem no mata-mata.

O Barcelona e Guardiola buscam evoluir e adaptar o jogo de posição à realidade do futebol atual e seguem dominando as ligas nacionais. Desde a saída de Pep em 2012 foram cinco títulos espanhois para o clube. Já o treinador faturou cinco taças na Alemanha e na Inglaterra, só perdendo em 2016/17, primeira temporada no Manchester City. Supremacia nos pontos corridos e acrescentando intuição e contexto ao modelo que considerava perfeito na Catalunha há uma década.

Porque tudo muda e exige inteligência e sensibilidade. Como mostra Daniel Alves, campeão e craque da Copa América, jogador mais vencedor da história com 40 conquistas aos 36 anos. Como foi feliz dez anos atrás ao "quebrar" o sistema do Barcelona com um passe, em tese, improdutivo para manter Messi ligado no jogo e construir uma história que nunca mais se repetiu.

 

Sobre o Autor

André Rocha é jornalista, carioca e blogueiro do UOL. Trabalhou também para Globoesporte.com, Lance, ESPN Brasil, Esporte Interativo e Editora Grande Área. Coautor dos livros “1981” e “É Tetra”. Acredita que futebol é mais que um jogo, mas o que acontece no campo é o que pauta todo o resto. Entender de tática e estratégia é (ou deveria ser) premissa, e não a diferença, para qualquer um que trabalha com o esporte. Contato: anunesrocha@gmail.com

Sobre o Blog

O blog se propõe a trazer análises e informações sobre futebol brasileiro e internacional, com enfoque na essência do jogo, mas também abrindo o leque para todas as abordagens possíveis sobre o esporte.