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André Rocha

Única vantagem do Flamengo sobre o Liverpool é não ter nada a perder

André Rocha

19/12/2019 09h57

Foto: Ali Haider / EPA

"When you ain't got nothing, you got nothing to lose" é um dos últimos versos da longa letra de "Like a Rolling Stone", do cantor e compositor Bob Dylan, Nobel de Literatura em 2016. Algo como "quando você não tem nada, você nada tem a perder".

O Flamengo tem muito. O melhor time da América do Sul, um treinador de bom nível, enorme torcida e a oportunidade de trabalhar a marca globalmente ao chegar à decisão do Mundial contra o campeão europeu.

Mas para grande parte do planeta, objetivamente, não passa de uma "zebra" contra o Liverpool. Fadado a ser o vice da sétima conquista consecutiva do vencedor da Liga dos Campeões no torneio da FIFA. Na grande maioria delas sem muito trabalho para o grande favorito.

Muitos podem não entender toda essa superioridade. Olham para o campo, não veem Messi e Cristiano Ronaldo para justificar todo esse temor. E talvez analisando jogador por jogador pelo potencial técnico, de fato, não haja tanta diferença assim. Só que a questão é outra, mais complexa.

O Liverpool é muito melhor porque tem em Jurgen Klopp um treinador de primeira prateleira no futebol mundial. Sem contar os quatro anos no clube que consolidam o trabalho que só veio a ser coroado com um título em maio na conquista da Champions, há um aperfeiçoamento constante dos processos.

Por conta do alto investimento em ciência e tecnologia para melhorar os treinamentos. Como é possível ganhar segundos e metros na circulação de bola para chegar mais rapidamente ao ataque? Ou a melhor maneira de estar distribuído em campo para recuperar a bola assim que a perde ao fazer pressão. Sem contar os recursos para mapear atletas com potencial, utilizando profissionais de scout no mundo todo.

E tudo é testado semanalmente no mais alto nível, no campeonato nacional e na Champions, contra times que possuem capacidade de investimento semelhante ou até bem superior. O jogo fica mais intenso e de melhor nível técnico e tático naturalmente. Por isso a disparidade.

Qual é a única vantagem do Flamengo para a final de sábado em Doha? Justamente não ter nada a perder. A responsabilidade do campeão da Libertadores é vencer a semifinal e o time rubro-negro já conseguiu. Agora é buscar a cereja do bolo em um ano histórico.

O fato de ser a última partida de 2019 pode ser a grande chave para Jorge Jesus tirar de um grupo desgastado em final de temporada força e concentração máximas para tentar fazer a partida perfeita e entregar o prometido ao "povo que pede o mundo de novo". É deixar tudo em campo e partir para as férias com a sensação de dever cumprido.

Porque será necessária uma concentração absurda da última linha de defesa para evitar as infiltrações de Salah e Mané em diagonal. Atenção total de Willian Arão e Gerson não só contra os meias dos Reds – que pode ser uma dupla entre Wijnaldum, caso se recupere, Milner, Oxlade-Chamberlain e Keita. Mas principalmente para bloquear a habitual movimentação de Roberto Firmino às costas dos volantes adversários.

E como conter os laterais Alexander-Arnold e Robertson? Everton Ribeiro e De Arrascaeta ou Bruno Henrique vão jogar de uma linha de fundo à outra? Ou Jesus vai estreitar os quatro defensores para que os meias pelos lados recuem como laterais formando uma linha de cinco ou seis protegendo a meta de Diego Alves? É viável mudar tanto o modelo de jogo correndo o risco de isolar e tirar Gabriel Barbosa do jogo?

Ou a solução mais lógica é arriscar tudo sem alterar a proposta, mantendo a defesa adiantada e buscar a superação na pressão constante sobre o adversário com a bola para conter o volume de jogo do Liverpool? River Plate e Al-Hilal tentaram fazer contra o próprio Flamengo e a conta veio salgada no segundo tempo com enorme desgaste que permitiu as viradas. O Monterrey também pregou na semifinal contra o "mistão" dos ingleses. Quando Klopp mandou os três titulares do banco para o campo não havia mais fôlego para lutar contra.

Deu para entender a missão inglória? O tamanho do desafio? A melhor notícia para o flamenguista é que se o triunfo improvável vier, o ano será o mais glorioso da história do clube. Talvez o maior de um time brasileiro em todos os tempos. Estadual, Brasileiro em 38 rodadas – e não em, no máximo, seis jogos, como o Santos de Pelé na Taça Brasil em 1962 e 1963 – e ainda Libertadores e um Mundial superando o time que efetivamente é o melhor da Europa. Em tempos de êxodo e seleções transnacionais dos clubes mais ricos do planeta.

O time de Jorge Jesus é franco-atirador e só volta a jogar em fevereiro de 2020. Já o Liverpool encara no "Boxing Day", cinco dias depois da final no Catar, o Leicester City, vice-líder da Premier League, obsessão dos Reds na temporada. É preciso medir os esforços. Já o Flamengo parte para a epopeia. Pode deixar a vida em campo. Até porque há a possibilidade, que a direção luta bravamente contra, de ser a última vez que jogadores e treinador estarão juntos, diante do volátil mercado brasileiro e sul-americano.

Voltando aos versos de Dylan, na frase seguinte à citada no início deste texto, ele diz "You're invisible now, you've got no secrets to conceal". O Flamengo, de fato, nada tem a perder. Nem tem segredos a esconder. Só não estará invisível no sábado. Talvez termine mesmo como o coadjuvante da vez. No pior cenário um mero "sparring". Mas se virar a história do avesso ganhará de vez a eternidade.

 

Sobre o Autor

André Rocha é jornalista, carioca e blogueiro do UOL. Trabalhou também para Globoesporte.com, Lance, ESPN Brasil, Esporte Interativo e Editora Grande Área. Coautor dos livros “1981” e “É Tetra”. Acredita que futebol é mais que um jogo, mas o que acontece no campo é o que pauta todo o resto. Entender de tática e estratégia é (ou deveria ser) premissa, e não a diferença, para qualquer um que trabalha com o esporte. Contato: anunesrocha@gmail.com

Sobre o Blog

O blog se propõe a trazer análises e informações sobre futebol brasileiro e internacional, com enfoque na essência do jogo, mas também abrindo o leque para todas as abordagens possíveis sobre o esporte.