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André Rocha

"Time de assassino!" Um grito, muitos significados

André Rocha

30/01/2020 08h39

Não é uma novidade. No Rio de Janeiro, torcedores já cantaram morte de jogador, queda de torcedor da arquibancada do Maracanã e desejaram o pior para um treinador passando mal à beira do campo. Sem contar a homofobia e outros preconceitos que ecoam nas arquibancadas.

O grito "time de assassino!" também não é novo. Começou com botafoguenses no Engenhão, seguiu com vascaínos no Maracanã em novembro do ano passado. Agora, torcedores do Fluminense chamaram a atenção por cantarem mais alto e, aparentemente, com mais gente na vitória por 1 a 0 sobre o time sub-23 do Flamengo pela Taça Guanabara.

A alusão é óbvia. A tragédia no Centro de Treinamentos do Flamengo que vitimou dez meninos e desgraçou a vida das famílias. Um grito apenas, mas que carrega alguns significados.

Significa que quando um Presidente da República repudia o "politicamente correto" no discurso de posse está colocando no imaginário popular que está liberado ser desumano, escroto. Um verme moral.

Quantos desses torcedores se importam com as vítimas em Brumadinho, no acidente de avião com o time da Chapecoense, na Boate Kiss e em outros casos semelhantes? Aliás, no dia da tragédia, alguns chegaram a postar em redes sociais absurdos como "só dez?", "menos 'mulambos' no mundo, melhor assim" e outras atrocidades. Talvez sejam os mesmos que agora enfiam uma desgraça em provocação clubística.

Mas o "time de assassino" carrega também preconceito. Algo que vem sendo mascarado em uma conexão passado-presente que pula muitas décadas. Quase um século. Hoje tentam colar no Flamengo um rótulo de time elitista. Unem a ponta da origem do clube, fundado por abastados da zona sul do Rio, passam pelos obstáculos criados ao Vasco, com racismo inclusive, para se inserir entre os grandes da cidade lá na primeira metade do século XX e conectam com o momento atual.  No qual o Fla sobra financeiramente e na gestão em relação aos rivais e tem tomado medidas, de fato, impopulares e que se preocupam pouco com os rubro-negros mais humildes.

Só esquecem que durante muito tempo, e ainda hoje, a maior torcida do país ganhou o estigma de ser formada por pobres, pretos, sem dentes na boca, favelados ("silêncio na favela!"), analfabetos ("Framengo"). E bandidos. Por isso também que  "assassino!" sai fácil da boca de muitos.

O grito também é de desespero. E não por acaso começou em novembro, nove meses depois do ocorrido. Foi quando muitos rivais perceberam, com título brasileiro encaminhado e às vésperas de decidir uma Libertadores, que a hora tão temida havia chegado: o momento em que a reestruturação financeira e de gestão do Flamengo renderia um time forte e vencedor.

O abismo de investimento e, consequentemente, de pretensões está mais claro. Mesmo com a imprevisibilidade do futebol é difícil hoje imaginar Vasco, Fluminense e Botafogo duelando no mesmo patamar em nível nacional e internacional. Um tem dívidas equacionadas, os demais beiram a insolvência. A tendência é que mais gente nas futuras gerações torça para o Flamengo e a distância fique inalcançável.

O que gritar de tão longe? O que ostentar diante de um rival com mais torcida e títulos em todos os âmbitos? Para os canalhas, só resta apelar. Da forma mais baixa possível.

Mas o grito também significa que é hora do Flamengo resolver o problema e comunicá-lo com mais transparência à sociedade. Punir os responsáveis e fechar o acordo com todas as famílias. Não vai trazer os meninos de volta, mas tira o peso. Vira a página institucional, ainda que homenagens sejam obrigatórias a cada dia 8 de fevereiro.

Não é uma negociação como outra qualquer. Não dá para ter "gelo no sangue" e buscar a melhor solução pensando apenas nos números. Esperar a Justiça e sua lentidão no Brasil é torturar todos os envolvidos. E dar munição aos ratos de esgoto, na arquibancada e nas redes sociais.

Por tudo que foi exposto, é bem provável que o grito persista mesmo com o caso resolvido. Mas ao menos haverá uma resposta definitiva, sem as dúvidas de hoje. E também não terá mais o incômodo quem vem a cada anúncio de contratação. Por mais que se entenda a complexidade do caso, não dá para ouvir que o Flamengo fechou com a Internazionale por Gabriel Barbosa pagando 17 milhões de euros e deixar de pensar nos meninos e familiares.

Sem contar os oportunistas de plantão. Já foram criadas as figuras do setorista, do comentarista e do colunista sobre a tragédia no Ninho. Só tratam disso, correndo atrás do clique e do like de rivais e também da indignação dos rubro-negros. O tal "engajamento".

Já passou da hora de resolver. Uma questão de consciência. Para colocar o grito "time de assassino" no lugar que merece: o lixo da história.

 

 

Sobre o Autor

André Rocha é jornalista, carioca e blogueiro do UOL. Trabalhou também para Globoesporte.com, Lance, ESPN Brasil, Esporte Interativo e Editora Grande Área. Coautor dos livros “1981” e “É Tetra”. Acredita que futebol é mais que um jogo, mas o que acontece no campo é o que pauta todo o resto. Entender de tática e estratégia é (ou deveria ser) premissa, e não a diferença, para qualquer um que trabalha com o esporte. Contato: anunesrocha@gmail.com

Sobre o Blog

O blog se propõe a trazer análises e informações sobre futebol brasileiro e internacional, com enfoque na essência do jogo, mas também abrindo o leque para todas as abordagens possíveis sobre o esporte.