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André Rocha

Paulo Autuori, parte 1: "Futebol brasileiro deveria estar planejando 2021"

André Rocha

06/05/2020 13h05

Foto: Doha Stadium Plus Qatar / Mohan

O treinador do Botafogo sempre foi uma voz dissonante e crítica no meio um tanto asséptico do futebol brasileiro, em que se foge das declarações que podem gerar polêmica sobre os temas mais relevantes no esporte e na sociedade.

Nesta primeira parte da entrevista, Paulo Autuori fala sobre a vida em meio a uma pandemia, o calendário brasileiro, demissões nos clubes e o tratamento que o país dá aos seus idosos.

BLOG – Em 2013, no "Bola da Vez" na ESPN Brasil, você me disse que o futebol não poderia ser um mundo à parte da sociedade. Sete anos depois, essa pressa de alguns clubes para voltarem a jogar em meio à pandemia seria uma tentativa de se manter como esse mundo paralelo, onde quase tudo é permitido?

PAULO AUTUORI – Foi bom você lembrar disso. Quem seria eu se quisesse retornar agora? O que mais me dá força é saber que tenho sido coerente comigo mesmo. O discurso não mudou. Eu tenho uma máxima que quem trabalha comigo conhece: "Futebol é vida". Não pode ser descolado da sociedade.

Sou completamente contra a volta aos treinamentos. Desculpe, mas quem aprova isso não tem a mínima noção da quantidade de pessoas envolvidas em uma sessão de treinos. E de origens distintas. Muitos olham apenas para a ponta do iceberg.

A base da pirâmide do meio futebol recebe entre dois salários mínimos e cinco mil reais. Isso incluindo Séries A e B. Gente que usa transporte público. Como eu vou dar treino sem roupeiro e massagista? Até analista de desempenho, que é uma função nova, tem suas dificuldades. Como forçar essas pessoas a trabalharem sem a devida proteção?

Por isso minha crítica de longos anos à CBF. Nada pessoal contra quem trabalha lá, é apenas uma questão de conceitos, divergência de opiniões. As pessoas que tomam decisões lá estão totalmente fora da realidade do futebol.

BLOG – Sei que você é treinador no Botafogo, não dirigente como já foi em outros clubes. Mas o clube acabou de demitir o Sebastião Leônidas, ídolo e funcionário de longa data, com 82 anos. Você tem 63 anos. O futebol brasileiro – ou melhor, o Brasil trata mal os seus idosos?

PAULO AUTUORI – O Brasil, não só futebol, trata mal o seu cidadão. E estou tranquilo para dar minha opinião porque, quando chego a um clube, aviso que, mesmo estando a serviço da instituição, eu tenho direito a ter uma opinião, ainda que crítica a essa mesma instituição.

Trata mal e há muito tempo. Estou nesse meio há 45 anos. No caso dos idosos, contexto no qual estou incluído, a falta de respeito é total. Não há a menor preocupação com eles. Eu morei em vários países e na maioria o tratamento é completamente diferente. Nem vou falar do Japão, porque é covardia. Lá os mais velhos são aproveitados em funções com menos exigência física e eles se sentem úteis e produtivos para a sociedade.

Mas no geral podem viajar e desfrutar dos anos que trabalharam e contribuíram. Aqui o meu pai, já falecido, teve que voltar a trabalhar já aposentado, com problema de visão, por necessidade. Isso quando o idoso encontra mercado de trabalho. É uma realidade muito cruel.

BLOG – Mas o que pensa especificamente sobre essas demissões em massa nos clubes brasileiros?

PAULO AUTUORI – Qualquer cidadão quando vê que alguém perde o emprego fica triste e lamenta. O que acontece nos clubes tem a ver com a gestão. Não se preocuparam em enxugam as máquinas e muitas vezes confundem aquilo que é necessidade com o que é vontade pessoal. É preciso priorizar o que é necessário, sem arrumar jeitinho de colocar um aqui e outro acolá e se preparar para momentos difíceis. Porque só se pensa em cenários positivos e em qualquer empreitada é preciso pensar em todas as hipóteses.

É algo que vai acontecer, e não só no futebol. Neste momento da pandemia muitas empresas estão demitindo funcionários, mas no futebol transcende um pouco. Mesmo sem ter como prever uma situação como a atual, é preciso tratar as coisas com muito mais responsabilidade e o requisito básico de gastar muito menos do que se arrecada.

BLOG – Você sempre foi crítico do que chamava de banalização do futebol, com jogos todos os dias para preencher grades de programações de TV. Agora vivemos o extremo oposto. Haverá uma reflexão sobre isso na volta ou, pelo contrário, a tendência é empilhar jogos para compensar o tempo perdido?

PAULO AUTUORI – Eu vejo com muita preocupação. Noto que há uma grande oportunidade para fazermos mudanças que são inexoráveis, mas só se fala em salvar o calendário de 2020.

É um ano totalmente atípico, o futebol brasileiro já devia estar planejando 2021. Porque o cenário é único. Nas grandes guerras você tinha nações batalhando entre si, mas as outras, ainda que envolvidas diplomaticamente, acompanhavam de longe. Agora não, todos estão sendo atingidos. A crise é global, o mundo parou.

O momento seria de reflexão para salvaguardar 2021. Debater de maneira clara a adequação ao calendário europeu, os prós e contras. Se houver espaço para opinar, ninguém pode reclamar depois. Muitos jogos são um malefício, mas poucos ou nenhum como agora, também. Temos condições de equilibrar. O problema é que aqui temos um solo infértil de ideias e debates. Porque há um prazo de validade, já que os clubes não se organizaram minimamente para enfrentar uma crise desse tamanho.

BLOG – Eu sei que isolamento social não é período de férias, mas o que você tem feito nesse tempo livre em casa?

PAULO AUTUORI – Eu tenho uma personalidade mais discreta, sou tranquilo. Então a minha vida em casa não mudou muito. Eu sou um crítico das redes sociais, dessa vida irreal. Uma necessidade de passar a imagem do que não é. Pessoas conectadas o tempo todo no próprio mundo, cada vez mais isoladas Estou levando a vida. Sou humanista, sinto falta do convívio, da conversa olho no olho. Ir ao cinema, teatro, restaurante com amigos também me faz muita falta.

Me ocupo com tudo que possa me fazer crescer. E algumas tarefas domésticas, já que estou sozinho aqui no apartamento (risos). Mas não serei diferente do que já era e não creio nessas teorias de que as pessoas vão mudar depois da pandemia. Só aqueles com bom senso e alguma sensibilidade podem passar a dar valor a outras coisas depois disso tudo.

Leio muito e não respiro futebol 24 horas por dia, porque acho que se perde abrangência no pensamento. Quanto mais aberto, mais apto a produzir no seu trabalho. E o futebol é antropologia pura. O homem e seu contexto. Ninguém nasce jogador de futebol. Todos têm suas angústias, medos, frustrações…

 

Na segunda e última parte da entrevista, Autuori recorda o Botafogo campeão brasileiro de 1995, dentro e fora de campo. Amanhã, aqui no blog.

 

 

Sobre o Autor

André Rocha é jornalista, carioca e blogueiro do UOL. Trabalhou também para Globoesporte.com, Lance, ESPN Brasil, Esporte Interativo e Editora Grande Área. Coautor dos livros “1981” e “É Tetra”. Acredita que futebol é mais que um jogo, mas o que acontece no campo é o que pauta todo o resto. Entender de tática e estratégia é (ou deveria ser) premissa, e não a diferença, para qualquer um que trabalha com o esporte. Contato: anunesrocha@gmail.com

Sobre o Blog

O blog se propõe a trazer análises e informações sobre futebol brasileiro e internacional, com enfoque na essência do jogo, mas também abrindo o leque para todas as abordagens possíveis sobre o esporte.