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André Rocha

Não são os dez reais. Problema é a mensagem que o Flamengo transmite

André Rocha

04/07/2020 09h45

O Flamengo é uma instituição centenária. Clube com mais de 40 milhões de torcedores. Para muitos uma religião. A vingança das derrotas da vida, como bem definiu Moraes Moreira ao cantar sobre Zico.

Transcende o futebol na sociedade. Tem algo de lúdico, até messiânico em alguns momentos. Precisa transmitir valores através dos ídolos, mas também de seus dirigentes pelas decisões que tomam.

Não é uma empresa. E mesmo estas hoje precisam de responsabilidade em suas ações públicas. Imagine um clube, com toda sua função social.

No incêndio do Ninho que vitimou fatalmente dez jovens em fevereiro do ano passado, este colunista escreveu aqui que o Flamengo não é Boate Kiss. Além do contexto da tragédia, há também uma questão filosófica que não permite ao clube se comportar da mesma maneira. Porque há uma mensagem a ser passada.

O Flamengo tem direito legal de buscar o menor custo financeiro na indenização das famílias dos jovens mortos no CT. Mas a mensagem que passa é que elas são um problema a se resolver, não pessoas que perderam seus amados que tinham sua integridade física como a responsabilidade mais básica do clube.

O Flamengo tem o direito legal de não pagar nenhuma premiação aos funcionários que não entram em campo atrás das vitórias ou participam diretamente dos jogos. Mas quando faz um acordo prévio e ameaça não cumprir, a mensagem é de que seus colaboradores são apenas dados em uma planilha, que podem ser apagados a qualquer momento.

O mesmo no momento das demissões dos 62 funcionários em meio a uma pandemia. Depois de divulgar que suportaria noventa dias num "teste de estresse", não esperou mais que 45 dias para dispensar pessoas que dificilmente conseguiriam reposição no mercado de trabalho. Tem o direito legal de dispensar? Claro, até porque outros clubes e empresas fizeram igual ou pior. Mas o passivo na empatia, que já era grande, aumentou.

O Flamengo tem o direito legal de querer retomar as atividades do time de futebol e buscar junto à Federação de Futebol do Estado do Rio de Janeiro (FFERJ) o retorno mais rápido possível do Campeonato Carioca. Há contas a pagar, marcas de patrocinadores para exibir…Mas a mensagem que passa em um contexto de milhares de mortos, jogando no Maracanã ao lado de um hospital de campanha, é a de que se aceita jogar em meio a cadáveres. E não adianta falar em protocolos, higiene e segurança. O Flamengo não é uma ilha, está inserida na realidade da cidade, do estado e do país.

O presidente do Flamengo tem o direito legal de usar a sua boa relação com o Presidente da República para sugerir uma solução que resolva em um primeiro momento seu imbróglio na negociação das transmissões dos jogos pelo estadual. E a Medida Provisória que é consequência desse diálogo pode até beneficiar outros clubes ou mesmo revolucionar o futebol brasileiro. Mas a mensagem que o clube passa é de que os demais times, que deveriam ser seus pares, são meras peças de um jogo no tabuleiro. Não há consenso, nem debate. Apenas o jeitinho do mais "malandro" e com maior poder de barganha para se dar bem.

Agora a ideia de cobrar dez reais a quem não é sócio pela transmissão de Flamengo x Volta Redonda, pela semifinal da Taça Rio no domingo às 16h, através de um aplicativo. Não é um valor alto e, se agora o direito de transmitir é do mandante, não há nenhum problema legal.

Mas justo em meio a uma crise econômica gravíssima? Depois da torcida comprar a briga contra a Globo e fazer da transmissão de Flamengo x Boavista pela Fla TV uma vitória maior do que os três pontos conquistados no campo?

Sabe qual é a mensagem que passa? A de que o torcedor é um mero número de cartão de crédito. Inclusive aquele lá no interior do Brasil, que não tem os recursos mínimos para ter acesso ao conteúdo. Mesmo que disponha dos dez reais. Esse mesmo torcedor que engrossa o caldo para que o clube siga recebendo um alto valor da mesma Globo, no Campeonato Brasileiro, para a transmissão em TV aberta. Aí ele conta, não é?

Ainda que hoje, diante da repercussão negativa, Rodolfo Landim e seus diretores recuem e tornem a transmissão novamente gratuita, o estrago já está feito. Porque o que vale e demonstra os valores de uma pessoa, de um grupo ou de uma instituição são os atos espontâneos. E esses tem sido os piores desta diretoria. Os remendos depois são puro marketing. Reposicionamento de marca.

O Flamengo é bem maior que isso. E é triste ver que justo no momento em que se agiganta no campo do futebol o clube se amesquinhe em seus atos mais simbólicos. A mensagem é a pior possível e envergonha os torcedores mais conscientes.

Alguns fanáticos que idolatram dirigentes se o time estiver vencendo talvez acordem agora, ao serem atingidos no bolso. Tem gente que só entende de dinheiro mesmo.

Sobre o Autor

André Rocha é jornalista, carioca e blogueiro do UOL. Trabalhou também para Globoesporte.com, Lance, ESPN Brasil, Esporte Interativo e Editora Grande Área. Coautor dos livros “1981” e “É Tetra”. Acredita que futebol é mais que um jogo, mas o que acontece no campo é o que pauta todo o resto. Entender de tática e estratégia é (ou deveria ser) premissa, e não a diferença, para qualquer um que trabalha com o esporte. Contato: anunesrocha@gmail.com

Sobre o Blog

O blog se propõe a trazer análises e informações sobre futebol brasileiro e internacional, com enfoque na essência do jogo, mas também abrindo o leque para todas as abordagens possíveis sobre o esporte.