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Carta aos saudosistas, por Mozart Maragno

André Rocha

24/08/2016 11h42

Escreve Mozart Maragno (@momitinho)

Saudosistas, alguma coisa está errada, não?

Tem momentos do debate sobre o futebol brasileiro que o ar fica quase irrespirável. Fundamentalmente, quando há uma derrota da seleção brasileira de futebol – a masculina. No Rio 2016 até empates serviram para isso. Não vou falar de 7×1, claro, pois já virou o grande clichê para os fracassos nacionais, de dentro e fora do futebol

Prefiro, no momento, abordar os fracassos nacionais do passado, sobretudo no âmbito do futebol olímpico, sem dúvida, um grande rosário de contundentes fracassos. É uma reflexão até pedagógica para o país onde vocês, incluindo os ex-jogadores, parecem entender que o passado era um oásis, um mar de êxitos sem fim. Apenas de talentos, de craques, gênios atemporais. Só histórias bonitas e de final feliz, contrastando com a mediocridade atual.

O ouro olímpico conquistado domingo desperta um outro lado de vocês, alguns com agudo complexo de vira-latas. Ninguém, racionalmente, vai pensar que essa conquista de Neymar e companhia possa ser a mais importante da galáxia em todos os tempos. Porém, há uma pressa clara em desmerecer o inédito triunfo, tudo muito normal e esperado, aliás.

Um prazer em desconstruir adversários, a importância do evento, em apontar "ganhou, mas é tudo uma bagunça, só pelo talento de alguns jogadores" – reparem que o "futebol que não tem mais talento", argumento clássico, agora é salvo pelo "talento".

Primeiro vamos aos méritos da equipe campeã olímpica, que não são poucos. Houve trabalho e um planejamento pensando em 2016. Ainda que Gallo tenha saído (o que foi um acerto), tivemos várias convocações olímpicas desde 2013, com duas taças conquistas no tradicional Torneio de Toulon e uma série de amistosos.

O problema com Gallo não foi de falta de datas e convocações ou de comprometimento com o trabalho, seu principal lema. Foi, mesmo, de concepção de futebol, desconectada do que necessita o futebol dito moderno e escancarada no Sulamericano Sub-20 de 2015.

Com as entradas de Erasmo Damiani e Rogério Micale (além dos bons técnicos da sub-17 e sub-15) o trabalho ganhou peso conceitual, conteúdo, crescendo também em resultados. O vice-campeonato mundial sub-20 sem poder sequer convocar o grupo foi um belo cartão de visitas de Micale. Gente da base e que entende de base, de formação, de jovens jogadores.

Ao assumir, de maneira truncada, o time olímpico, Micale tinha a chance de marcar território para o seu perfil estudioso de técnico, ainda mais com uma conquista inédita e tão aguardada. Conseguiu, e justamente no país do "ganhou o que?", o que adiciona monumental peso ao seu currículo.

Não se pode desconsiderar que há um interessante trabalho conceitual sendo desenvolvido na base da CBF – e não tenho procuração pra defender a controversa entidade, para usar um eufemismo. Fica claro que não foi algo fruto apenas do talento individual.

Sobre os adversários, podemos considerar o time brasileiro, exceto Neymar, Renato Augusto e Marquinhos, muito menos rodado e experiente que a ótima seleção alemã. Gabigol e Zeca, por exemplo, nunca disputaram nem uma Libertadores, muito menos jogos pesados em gramados europeus. O time alemão dos talentosos Gnabry, Meyer e Brandt (potenciais atletas para a seleção principal), além de organizado, era muito perigoso no terço final, como gosta de dizer Roger Machado, técnico do Grêmio.

Lembro, também, que os titulares Gabigol e Gabriel Jesus não completaram 20 anos de idade. Desfalques com a experiência internacional em Champions League de Fabinho (pretendido pelo United de Mourinho) e Fred, por exemplo, não podem ser desprezados, pra não colocar que só a Alemanha teve seus desfalques.

E a história do futebol olímpico brasileiro desde 1952 como foi construída? Teve fracasso de todo tipo, para todos os gostos, de todas as formas. Claro que vocês, saudosistas, vão dar sempre muitas justificativas, pra não dizer desculpas. Dizer, por exemplo, que o nível era padrão intergaláctico, ou que ninguém ligava, que seleções "comunistas" levavam profissionais.

Mas quando pesquiso sobre jogos do passado, fico imaginando o esquadrão que não era a gloriosa seleção da República Árabe Unida, que eliminou o Brasil na primeira fase em 1964. Ou o time de Falcão e Dinamite que passou vergonha na primeira fase em 1972. Ou a equipe de Marcelinho Carioca e Cafu que não conseguiu uma vaguinha para Barcelona 1992.

Deve ter sido vertigem minha assistir ao Brasil perder de 1×0 para a máquina do Japão em 1996 com uma cena pastelão digna de "Os Trapalhões" protagonizada por Aldair e Dida. Não pode ser verdade que em 2000 o Brasil, dos craques Fábio Bilica e Baiano, conseguiu tomar um gol de uma seleção com nove em campo e ir pra casa sem nem disputar uma medalhinha de bronze que seja. Sem dúvida, não vimos fracassos e vexames. Foram apenas fatalidades.

O gênio Antonio Abujamra dizia, em seu "Provocações", na TV Cultura, que das mais de 100 peças de teatro que dirigiu ou atuou, havia uns 90 fracassos. Claro que no mundo das artes, que também tem muita vaidade, era quase um choque que um dos maiores talentos brasileiros pudesse provocar, com grandeza, sem apenas falar dos seus grandes sucessos e de sua justa fama.

Não por acaso, insisto e solicito que nossos ex-atletas me permitam um conselho: assumam seus fracassos e sejam mais solidários com os atuais jogadores que passam muito do que vocês passaram. A atual geração conquistou o inédito ouro sob uma pressão absurda que a sequência de fracassos de vocês construíram.

Caso desconsiderem esse humilde conselho, uma coisa é certa: de experiência positiva olímpica, pelo menos, vocês nunca poderão dizer o surrado "no meu tempo é que era bom".

Escreveu Mozart Maragno

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Sobre o Autor

André Rocha é jornalista, carioca e blogueiro do UOL. Trabalhou também para Globoesporte.com, Lance, ESPN Brasil, Esporte Interativo e Editora Grande Área. Coautor dos livros “1981” e “É Tetra”. Acredita que futebol é mais que um jogo, mas o que acontece no campo é o que pauta todo o resto. Entender de tática e estratégia é (ou deveria ser) premissa, e não a diferença, para qualquer um que trabalha com o esporte. Contato: anunesrocha@gmail.com

Sobre o Blog

O blog se propõe a trazer análises e informações sobre futebol brasileiro e internacional, com enfoque na essência do jogo, mas também abrindo o leque para todas as abordagens possíveis sobre o esporte.