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Por que Francesco Totti, por Lucas Caetano

André Rocha

28/05/2017 13h04

ESCREVE LUCAS CAETANO (https://medium.com/@lucascaetano)

Na tarde de 26 de junho de 2006, eu subia o morro da Nova Cintra, em Santos, para mais um dia de treino pelo time sub-12 do Jabaquara — coincidentemente do qual fazia parte Emerson Palmieri, hoje atleta da Roma — na companhia de meu avô, autoincumbido de me levar aonde fosse sob o desejo posteriormente fracassado de ver o neto jogar futebol profissionalmente.

O rádio de seu carro estava sintonizado na transmissão da partida entre Itália e Austrália, pelas oitavas de final da Copa do Mundo na Alemanha, ocorrida no estádio Fritz Walter, em Kaiserslautern. Os instantes fugazes que se sucediam em meio à expectativa de dois ouvintes ávidos pelo desfecho daquele jogo eram uma versão acelerada do filme que se passava na cabeça de Francesco Totti, responsável por bater, aos 50 minutos do segundo tempo, um pênalti inexistente que colocaria ou não a Azzurra na fase seguinte. Fabio Grosso sequer fora tocado pelo zagueiro Neill. Possivelmente o gênero deste curta oscilara entre o suspense e o drama, esboçando acarretar em terror ou comédia, de acordo com o ponto de vista, em caso de eventual e improvável eliminação italiana.

Meu conhecimento em relação ao camisa 10 restringia-se ao fato de Totti ser o craque e capitão romanista há anos, ao longo dos quais vencera um Campeonato Italiano, e que na Copa de 2006 estava longe de sua forma física ideal em razão de uma fratura no perônio sofrida em fevereiro daquela temporada. Também sabia, devido às tradicionais recapitulações de Copas anteriores feitas por jornais e programas esportivos, que o então meia fora expulso quatro anos antes, na mesma fase, contra a anfitriã Coreia do Sul, em Daejeon, por ter recebido o segundo cartão amarelo fruto de uma simulação após um choque com um defensor coreano na grande área.

Minha conclusão, e creio ser a mesma de muitos, é de que ali nada houve além de uma dividida; nada de pênalti, tampouco simulação. Aquele jogo transporta consigo uma densa carga de controvérsia abastecida pela atuação do árbitro equatoriano Byron Moreno, cujas decisões não só decretaram a retirada de Totti, como também invalidaram um gol do volante Tommasi, em posição legal no ponto em que recebera um passe em profundidade de Christian Vieri.

Toda a saga ocorrera na prorrogação, quando o placar anotava um gol para cada lado. No minuto final, a Coreia desempatou o cotejo, classificando-se para enfrentar a Espanha, em cujo duelo os asiáticos desfrutaram de nova colaboração do apito para seguir fazendo história.

Com a curiosidade aguçada e disposto a imergir na história de Francesco Totti, busquei ainda naquele 26 de junho de 2006 informações na internet para aos poucos compreender a dimensão do que ocorrera em Kaiserslautern e de como se construíra a narrativa do filme transcorrido na mente do craque. À lesão e à expulsão em Daejeon somava-se um componente que seguramente mancharia para sempre a trajetória de Il Capitano: nova suspensão, esta incontestável, sofrida depois de o italiano cuspir no rosto do dinamarquês Christian Poulsen durante a estreia na Eurocopa de 2004, em Portugal.

Totti levou um gancho de três partidas e não voltou a atuar pelo torneio continental, pois sua equipe sucumbira à fase de grupos. Nessa mesma época, recusara uma proposta oficial do Real Madrid, onde certamente ganharia mais troféus, mais dinheiro e mais visibilidade. Quando esteve prestes a aceitar, recuou, coibido pelo que há de mais puro: o amor ao clube de infância, tornando ali impossível projetar o ídolo vestindo outra camisa.

A tarde no Fritz Walter não deixava de ser, portanto, o divisor de águas em uma carreira que de toda forma seria brilhante, mas cuja luz não resplandeceria com tanto vigor caso a penalidade não fosse convertida. Mesmo que o atual Rei de Roma não figure entre os jogadores mais decisivos pela Squadra Azzurra, muito por causa de seu estado físico impróprio em solo alemão, o quarto Mondiali da Itália dependera também de seu pé direito para ser ratificado. Totti deixara deliberadamente a seleção após a conquista sob o pretexto de recuperar a condição física e dedicar-se exclusivamente à Roma, sua maior paixão.

Terminada a Copa de 2006, acompanhei pela primeira vez uma temporada europeia completa. Logo de cara, uma surpresa: Totti estava escalado como centroavante. E fora assim durante todo o resto da primeira passagem de Luciano Spalletti no comando da Roma. Entretanto, o 10 não havia virado um típico 9. Constatando a facilidade do capitão tanto para criar jogadas quanto para finalizá-las, o treinador alocou-o na última posição do ataque, mas, no decorrer das pelejas, Totti voltava para o meio-campo e alternava suas funções ora como armador de jogadas para os avanços dos brasileiros Taddei e Mancini pelas pontas e do compatriota Simone Perrotta pelo centro, ora selando o fim delas.

Nesse novo ofício o ídolo romanista balançou as redes 26 vezes no Campeonato Italiano e abocanhou a Chuteira de Ouro da Europa. Nesta temporada, a exemplo da época seguinte, os gialorrossi ergueram a Copa Itália, ambas em decisões ante à Internazionale de Milão — a primeira delas com um deleitante 6×2 no Estádio Olímpico — , porém os nerazurri assumiram a soberania na Série A, da qual a Roma fora vice-campeã nas duas ocasiões. Este período engloba também as melhores campanhas de Totti na Uefa Champions League, com confrontos memoráveis frente aos então favoritos Lyon e Real Madrid nas oitavas-de-final; nas quartas, todavia, os romanistas renderam-se duas vezes consecutivas a um poderoso e faminto Manchester United, que de brinde impusera um pungente 7×1 em Old Trafford.

Meu cortejo repentino a Francesco Totti apresentava-se melhor que a encomenda.

Em setembro de 2009, Spalletti deixou o clube, enovelado em uma transição confusa após a chegada de Claudio Ranieri, que parecia não fazer questão alguma de escalar seu capitão entre os titulares. No entanto, enquanto ocupava o meio da tabela sem maiores aspirações no Italiano, o time inesperadamente engatou uma sequência de vitórias e atingiu a liderança a cinco rodadas do final. Talvez por essa surpresa, suponho que este Scudetto de 2010, que a Roma novamente deixara escapar na hora H mais uma vez para a Internazionale, seja o que Totti e o clube mais se lamentam por não terem conquistado desde a glória alcançada nove anos antes.

Os gialorrossi repetiram o segundo posto em 2014 e 2015, mas sem que tivesse havido uma verdadeira disputa, uma vez que a Juventus disparara a ganhar campeonatos com vasta margem sobre seus concorrentes. Infiro também que esse novo baque aliciou o camisa 10 a desferir aquele chute grotesco na perna de Mario Balotelli e ser expulso durante a decisão da Copa Itália que a mesma Inter vencera instantes depois. De qualquer forma, Il Capitano fora previsível e coerentemente repudiado pelos críticos, e então vislumbrou-se um desfecho próximo em sua carreira, tangido pelas más temporadas da Roma — e dele — na sequência.

Eu mesmo compartilhava dessa ideia. A idade chega para todos. Assistir a um jogo de Totti era esperar por um ou outro passe de primeira, alguns deles de calcanhar, daqueles que desmontam a defesa adversária, um lançamento preciso ou um uma bomba de fora da área, embora esses lampejos fossem suficientes em certos momentos. Meu receio era de que ele parasse em baixa. Daí a Roma anunciou seu novo treinador para a temporada 2013–2014: o francês Rudi Garcia.

A equipe triunfara nas dez primeiras rodadas com Totti desfilando em campo, cena já inimaginável para mim. Ótimo, pensei, ele teria o encerramento que merece, ou algo próximo disso. Eu defendia que a caminhada terminasse em maio de 2014, após uma temporada em bom nível como há tempos não acontecia, mas meses depois fui forçado a refutar minha própria teoria.

Uma aposentadoria naquele estágio nos privaria de ver Totti seguir adicionando capítulos à sua jornada e empilhando recordes. A cavadinha sobre Joe Hart contra o Manchester City na Inglaterra, pela Uefa Champions League, transformou-o no jogador mais velho a marcar um gol na competição, aos 38 anos e três dias, nota esta editada pelo próprio autor, que dali a 56 dias, em Moscou, voltaria a balançar a rede enfrentando o CSKA.

Ainda na mesma temporada Totti se igualara ao brasileiro naturalizado italiano e também romanista Dino da Costa como o maior artilheiro da história do derby diante da Lazio, ao anotar os dois tentos da equipe no empate por 2 a 2. Segundo o craque, este é o recorde que ele mais aprecia, o que ajuda a dimensionar o amor entre Totti, Roma e o ódio — recíproco — à parcela azul da cidade eterna.

Ocorridos os fatos acima, cessei qualquer conjectura acerca do fim deste casamento, afinal, a exemplo da vida, o futebol é imprevisível, ilusório, traiçoeiro, e está sempre disposto a golpear aqueles que ousam alterar o curso das coisas. Seguindo a toada, o ano passado trouxera mais novidades. Subtraído pelo regressado Luciano Spalletti, com quem outrora tanto se entrosara, Totti desembestou a evitar derrotas e garantir triunfos para a Roma nas exibições finais do campeonato.

Em uma delas, frente ao Torino, o narrador e locutor do Estádio Olímpico, Carlo Zampa, viu-se por alguns segundos incapaz de dizer qualquer palavra, envolto em um choro copioso enquanto relatava o ato redentor de sua divindade.

O canto do cisne de Il Capitano não fora suficiente para Spalletti dar a ele mais minutos em campo. As informações vindas da imprensa italiana sugerem que os dois seguem às turras, algo que talvez tenha contribuído para antecipar o fim da era Totti. O vínculo do comandante com o clube idem. É insensato cobrar a escalação frequente de um atleta de 40 anos, que visivelmente depende de brilharecos cada vez mais escassos e acusa natural limitação para acompanhar um ritmo dinâmico de jogo.

A Roma briga ponto a ponto com o Napoli pelo vice-campeonato italiano, que garante vaga direta à fase de grupos da Uefa Champions League e impede a chance de queda na etapa preliminar como ocorrera diante do Porto na atual edição, portanto deve-se prioritariamente pensar além de Totti. Entretanto, não é compreensível negar a entrada do craque em partidas já definidas, por exemplo nos 4 a 1 contra o Milan em um San Siro aparelhado naquele dia para homenagear o atleta.

Fica a impressão de que algumas lacunas poderiam ser preenchidas dentro deste cenário de despedida de uma lenda. Porém, se pararmos para refletir, são diversos os espaços vazios na carreira de Francesco Totti, sobretudo no que concerne a prêmios coletivos e individuais. Ele mesmo afirma que, tivesse dito sim ao Real Madrid, ganharia três Champions League e duas Bolas de Ouro. Impossível saber.

Em tese, lá ele seria apenas mais um galáctico, tendo de se acostumar a uma rotina na qual sua figura não seria a principal, muito menos coberta pelo caráter supremo que adquirira na capital italiana. A subjetividade nos conduz a infindáveis objeções. E mesmo que ele chegasse a esse topo, provavelmente eu não destinaria parte do meu fim de semana a escrever sobre um ídolo, ao menos não da maneira que o faço, e certamente as homenagens prestadas a ele seriam reduzidas, quiçá impensáveis.

Totti talvez seja a personalidade atual que mais se enquadra na luta (não que ele necessariamente lute) contra o futebol moderno, onde os times entram juntos em campos devido a uma imposição hipócrita do tal fair play, onde o torcedor (digo, consumidor) é obrigado a permanecer sentado para não ser retirado pelos seguranças, onde as selfies nas cadeiras (arquibancada? Isso é passado) valem mais que certos gestos de apoio dos fãs, onde arenas suntuosas (estádio? Isso é passado) destroem a identidade do futebol de um país. Onde o dinheiro sufoca a paixão.

Neste domingo, veremos um Olímpico apinhado de romanistas em um misto de alegria, tristeza, gratidão e dúvida; afinal, muitos deles, assim como vários de nós, não têm ideia do que é a Roma sem Totti. Tampouco quem é Totti sem a Roma.

ESCREVEU LUCAS CAETANO

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Sobre o Autor

André Rocha é jornalista, carioca e blogueiro do UOL. Trabalhou também para Globoesporte.com, Lance, ESPN Brasil, Esporte Interativo e Editora Grande Área. Coautor dos livros “1981” e “É Tetra”. Acredita que futebol é mais que um jogo, mas o que acontece no campo é o que pauta todo o resto. Entender de tática e estratégia é (ou deveria ser) premissa, e não a diferença, para qualquer um que trabalha com o esporte. Contato: anunesrocha@gmail.com

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