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Brasil deve unir futebol intuitivo de Felipão e o jogar de memória de Tite

André Rocha

28/11/2018 07h40

Foto: Alex Silva (Agência Estado)

O maior título da carreira de Luiz Felipe Scolari é o último mundial do Brasil em 2002. Pouco mais de um ano depois de ser anunciado como treinador da seleção. Aos trancos e barrancos formou uma base que contou com a ascensão de Ronaldinho Gaúcho e a volta de Ronaldo para encontrar o time no amistoso contra Portugal há dois meses da Copa e depois efetuar duas trocas: Emerson por Gilberto Silva e Kléberson por Juninho Paulista.

Sem muito tempo, fez o básico da escola brasileira: "fechou a casinha" com Edmilson ora terceiro zagueiro, ora volante e baseou seu jogo ofensivo na força e velocidade dos laterais Cafu e Roberto Carlos e no talento dos dois Ronaldos e mais Rivaldo. Venceu sete jogos – na estreia contra a Turquia e nas oitavas diante da Bélgica com erros graves da arbitragem que beneficiaram a seleção – e faturou a quinta taça para a camisa verde e amarela.

O mesmo futebol intuitivo que consagra o técnico veterano 16 anos depois na sua volta ao Brasil após três temporadas de sucesso na China. Sem muito tempo para treinar por estar envolvido em três competições fez o simples: organizou a defesa, protegeu os veteranos Edu Dracena e Felipe Melo e apelou para ataques mais diretos, procurando um pivô – Borja ou Deyverson – e o talento de Dudu, potencializado pelo carinho de Scolari ao atacante.

Fez o que a diretoria e a torcida queriam: priorizou Libertadores e Copa do Brasil e alternava três ou quatro titulares no Brasileiro. Atrás de Flamengo e São Paulo nos pontos corridos, foi resgatando o desempenho de Lucas Lima e Mayke, ganhou o reforço do zagueiro paraguaio Gustavo Gómez e, com o clima leve pelos bons resultados no mata-mata, foi pontuando e subindo até chegar à liderança.

Com as eliminações para Cruzeiro no torneio nacional e Boca Juniors no continental, a pressão para transformar a primeira colocação e a invencibilidade em título. O desempenho caiu, mas não o aproveitamento. Na vitória sobre o Vasco em São Januário, a confirmação do décimo título brasileiro do Palmeiras.

Todos felizes e à vontade. Clima de família. Funciona desde que o comandante gaúcho ganhou destaque no cenário nacional com a conquista da Copa do Brasil de 1991 pelo Criciúma. Passando por Grêmio, Palmeiras e Cruzeiro em sua fase mais gloriosa que alcançou o ápice no Mundial de 2002.

Felipão coloca cada um em seu lugar, se defende com encaixe na marcação, pressão sobre o adversário com a bola e perseguições curtas ou longas dependendo do adversário. Ofensivamente abusa das ligações diretas para ganhar metros de campo e acionar os atacantes mais perto da área do oponente para definir a jogada rapidamente. Se a bola bater e voltar, o sistema defensivo está organizado para não ser surpreendido no contragolpe.

Para isto não precisa de muitas sessões de treinamento. A assimilação é rápida também porque cada atleta só necessita colocar para fora os instintos de cada função. Velocidade dos laterais, vigor e senso de cobertura dos zagueiros, desarmes dos volantes, criatividade do meia mais solto, agressividade dos ponteiros, pivô e faro de gol do atacante de referência.

Bem diferente do jogar "de memória" de Tite. Porque exige repertório mais amplo e maior entendimento coletivo. A começar pela marcação por zona com última linha de defesa posicionada para proteger a própria meta. Algo pouco ou nada trabalhado nas divisões de base nas décadas passadas.

Exige convencimento e tempo. Algo que Tite ganhou no Corinthians, mesmo com o furacão Tolima no início de 2011. Foi burilando o time até vencer o Brasileiro. Com a proposta amadurecida e direito a variações do 4-2-3-1 para o 4-1-4-1 com o avanço do volante Paulinho como meia e alternando Danilo e Emerson Sheik pelo centro e à esquerda do ataque venceu a Libertadores. Com Guerrero comandando o ataque num 4-4-1-1 superou o Chelsea no último título brasileiro no Mundial de clubes.

Em 2014 foi para a Europa buscar repertório ofensivo para adicionar à solidez sem a bola que marcou sua fase vitoriosa. Mirava a seleção depois da Copa de 2014, com Felipão no comando. A CBF preferiu Dunga e Tite voltou ao Corinthians no ano seguinte. Encontrou atletas campeões com ele, mas de novo encarou o desafio de convencer e fazer funcionar suas novas ideias com horas em campo, treinando e jogando.

Adicionou posse de bola e criatividade através de tabelas e triangulações para infiltrar. Ajustou peças até encaixar Vagner Love no ataque, aprimorar Jadson como ponta articulador partindo da direita e fazer Renato Augusto comandar a saída de bola e as trocas de passes para o time voar na reta final do Brasileiro e ser o último campeão capaz de dar espetáculo com um belo jogo coletivo.

Em 2016 foi chamado para resgatar a seleção. Precisando de resultados imediatos para colocar o Brasil na Copa e sem tempo para treinar, Tite criou uma rotina árdua com sua comissão técnica de estudo e observação de atletas. O objetivo era claro: fazer o jogador repetir na seleção os movimentos e a dinâmica individual e coletiva que pratica no clube. Ativar a memória de um jeito diferente. Totalmente sintonizado com as práticas do futebol atual não foi difícil convencer os comandados nas Eliminatórias.

O único que fugia do que fazia no clube era Philippe Coutinho. Meia pela esquerda no Liverpool virou ponta articulador pela direita, mas aproveitando a liberdade para circular e aparecendo por dentro para marcar um golaço nos 3 a 0 sobre a Argentina no Mineirão. Ascensão rápida até o topo nas Eliminatórias e vaga garantida no Mundial da Rússia com enorme antecedência.

Na Copa, Tite sentiu o peso da missão. Ele mesmo admite que na execução do hino na estreia contra a Suíça a ficha caiu. Faltou tempo para se preparar mentalmente. Em dois anos teve que colocar o Brasil na Copa, depois trabalhar para ser competitivo diante dos europeus.

Pior: teve sua base abalada. Daniel Alves cortado, Renato Augusto fora de forma, Neymar lesionado três meses antes da Copa, Gabriel Jesus oscilando no Manchester City. Usou Danilo na lateral direita, depois Fagner. Centralizou Coutinho e abriu Willian pela direita. Quando Douglas Costa viraria titular se contundiu.

Mexeu na estrutura, perdeu desempenho. Mas seguiu na Copa até o golpe fatal: sem Casemiro, viu Fernandinho marcar a favor da Bélgica e o sistema defensivo desmoronar com a instabilidade emocional de seu volante de proteção e também a qualidade de Lukaku, De Bruyne e Hazard. Para depois cumprir sua melhor atuação na Copa ao longo do segundo tempo, desperdiçar chances claras com Renato Augusto e Coutinho, ver Courtois fazer milagre em chute de Neymar e voltar para casa nas quartas de final.

Eliminação que colocou Tite no olho do furacão resultadista tipicamente brasileiro. De gênio, referência de competência até para políticos a burro e fraco, incapaz de gerir o mimado Neymar. Da China, Felipão deu o recado: agora não era o último a perder com a seleção, mas era o último a ter vencido.

Em tempos tão apressados, o 7 a 1 tinha sido empurrado para o passado. Com o fracasso da Alemanha em 2018, a maior derrota da seleção brasileira passou a ser relativizada. Justamente o revés que mostrou que o futebol meramente intuitivo pode desabar nas disputas em altíssimo nível. Também retirou definitivamente o nome de Scolari da mira de times e seleções nos principais centros.

Por outro lado, talvez tenha faltado mais instinto e sensibilidade a Tite no Mundial. Quando o entrosamento e a memória faltaram e era preciso ter feeling para tomar decisões sob pressão, o treinador com mais preparo e estudo vacilou. Com um novo ciclo, agora desde o início mas com enorme desafio já no ano que vem com a disputa da Copa América em casa, surge a chance de amadurecer, ganhar cancha no universo de seleções.

Acima de tudo se encaixar no jogo por demanda que ascende no futebol mundial. Inspirado no Real Madrid de Zidane e Cristiano Ronaldo, mas também na França de Deschamps e Mbappé. Campeões "camaleões", que vencem atacando ou explorando contragolpes.

Inteligência e versatilidade para se adaptar aos mais diversos cenários. Ter conceitos, mas também capacidade de improvisar. Principalmente no mata-mata, quase sempre decidido com força mental e talento. Como em 2002 com Felipão. Agora, paradoxalmente, o campeão da regularidade em seu primeiro título brasileiro nos pontos corridos.

Tite e Scolari são dois lados de um futebol brasileiro buscando o retorno ao topo. Antigos companheiros da escola gaúcha, hoje separados por desavenças e trocas de farpas. Exatamente pelas visões antagônicas que resistem em ver valor no outro pólo.

O melhor caminho seria o aprendizado em conjunto para uma evolução segura. Dos treinadores e do nosso jogo, que pode e deve alternar memória e instinto para voltar a se impor no cenário mundial.

 

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Sobre o Autor

André Rocha é jornalista, carioca e blogueiro do UOL. Trabalhou também para Globoesporte.com, Lance, ESPN Brasil, Esporte Interativo e Editora Grande Área. Coautor dos livros “1981” e “É Tetra”. Acredita que futebol é mais que um jogo, mas o que acontece no campo é o que pauta todo o resto. Entender de tática e estratégia é (ou deveria ser) premissa, e não a diferença, para qualquer um que trabalha com o esporte. Contato: anunesrocha@gmail.com

Sobre o Blog

O blog se propõe a trazer análises e informações sobre futebol brasileiro e internacional, com enfoque na essência do jogo, mas também abrindo o leque para todas as abordagens possíveis sobre o esporte.