Zagallo, a melhor resposta à tese de Casagrande sobre "contaminação tática"
André Rocha
27/03/2019 06h29
Nos 3 a 1 sobre a República Tcheca, a seleção brasileira sofreu novamente com pouca mobilidade e falta de triangulação pelos lados. Até Tite mandar a campo Gabriel Jesus, David Neres, Arthur e Everton e, numa espécie de 4-2-4, virar o jogo no segundo tempo. Com nítida vantagem física e muita gente chegando na área adversária.
Mas, não por acaso, enquanto o Brasil perdia por 1 a 0 na primeira etapa, a transmissão da Rede Globo teve um comentário de Casagrande que chamou atenção: "O futebol brasileiro não está ultrapassado, nem envelhecido. Está contaminado por esquemas táticos. Tem que cumprir isso e aquilo e tira a criatividade do jogador brasileiro. Tira a ginga, perde a iniciativa, a capacidade da jogada individual, de partir para cima e tabelar. Perde a ousadia. É uma 'contaminação tática"'.
O curioso é que este mesmo Casagrande elogiava Tite nas vitórias durante as últimas Eliminatórias exatamente porque tinha organizado a seleção brasileira, ao contrário de Dunga, e, com isso, potencializado os talentos de uma geração que não era tão fraca assim. De novo o nosso resultadismo de todo dia.
A melhor resposta a esta tese do ex-jogador e comentarista, porém, é a lembrança de um dos grandes personagens da história do futebol brasileiro e tantas vezes elogiado pelo próprio "Casão": Mário Jorge Lobo Zagallo.
Talvez o maior "contaminador tático" da camisa verde e amarela cinco vezes campeã do mundo. Quatro com ele. A primeira sendo o ponta esquerda do 4-2-4 de Vicente Feola que ajudava Nilton Santos pela esquerda e Zito e Didi no meio-campo já na primeira conquista mundial em 1958.
Para quatro anos depois, com Aymoré Moreira, ser incorporado definitivamente ao meio-campo e deixar o espaço pela esquerda para Amarildo, substituto do lesionado Pelé, fazer suas principais jogadas. Também liberar Garrincha do outro lado para ser o craque do Mundial no Chile.
Seleção que foi vanguarda tática já em 1950 com a "diagonal" de Flávio Costa. Oito anos depois, Feola, discípulo do húngaro Béla Guttmann, desfez o 3-2-2-3 do "WM", sistema tático tradicional da época, e adotou linha de quatro na defesa. Em 1962, o 4-3-3 que foi influência para o 4-4-2 da Inglaterra campeã mundial quatro anos depois em casa. Alf Ramsey, o treinador do "English Team", chamava os ponteiros Ball e Peters de "meus dois Zagallos".
Em 1970, já como treinador, Zagallo também fez a tática organizar o talento. Everaldo não era mais jogador que Marco Antonio, mas dava sustentação defensiva como lateral pela esquerda para Carlos Alberto Torres descer mais do lado oposto. Também permitia que os canhotos Gerson, Rivelino e Tostão tivessem espaços para trabalhar no setor preferido.
A primeira execução, na prática, do 4-2-3-1 teve muito de tática e também preparo físico. A ideia de Zagallo era simples: se os europeus ganham na força e velocidade, explorando os espaços deixados pelos brasileiros, basta defender com todos no próprio campo e usar as brechas deixadas por eles. Defender como time pequeno e atacar como grande. Ou contra-atacar.
Como no último gol dos 4 a 1 sobre a Itália no México. Que Tite utilizou em sua palestra no evento "Somos Futebol", com Marcelo Bielsa e Fabio Capello na CBF em 2017. Jogada pensada e ensaiada, com Jairzinho tirando Fachetti da esquerda dentro da marcação individual italiana para abrir o corredor e o "Capita" aparecer para receber assistência de Pelé e finalizar. Tática e estratégia facilitando a qualidade individual.
Tanto que quando faltou a organização o próprio Zagallo sucumbiu. Em 1974 a seleção era uma bagunça dentro e fora de campo e foi atropelada pela Holanda de Michels e Cruyff. Para não tirar a confiança dos jogadores, o técnico chamou o "Carrossel" de "tico-tico no fubá" antes da partida e foi criticado depois da derrota.
Irônico lembrar que uma simplificação foi detonada, enquanto Tite foi massacrado após o empate com o Panamá por usar termos mais complexos. Para variar, o resultado é que define o tom da análise. Como bem lembrou o colega Gustavo Zupak no Twitter, nas vitórias por 3 a 0 sobre a Argentina e 4 a 1 sobre o Uruguai pelas Eliminatórias, o treinador também usou expressões pouco usuais como "link inicial", "externos de agressividade" e "flutuações". Mas com vitórias e bom futebol o vocabulário vira até alvo de elogios ao "técnico estudioso".
Zagallo também foi alvo em 1998, mesmo chegando à decisão da Copa. Pelo "nó tático" da França de Zidane. Já com a saúde prejudicada, viu o Brasil de Carlos Alberto Parreira, o do "quadrado mágico" com Kaká, Ronaldinho, Adriano e Ronaldo, se arrastar no Mundial de 2006. Muita qualidade, pouca organização.
Casagrande, não está sobrando tática na seleção, nem no futebol brasileiro. O que falta na seleção é confiança e nos nossos times um plano melhor para atacar, sem depender tanto de jogadas aéreas, bola parada e lampejos dos mais habilidosos. Organização ofensiva, como no lendário gol da confirmação do tri em 1970. Pensada e treinada por Zagallo.
No final, o mais irônico é perceber que o Brasil virou o jogo em Praga com Neres e Everton sendo os "externos desequilibrantes". Se a seleção de Tite vencer a Copa América, Casagrande, Galvão Bueno e companhia nem vão lembrar do que disseram neste momento de baixa. Eles estão lá para "vender emoções", dar voz ao delírio, à catarse. Para cima ou para baixo. Ufanismo ou fatalismo. Sempre de acordo com o placar.
Tite é a bola da vez. Já foi Zagallo, mesmo com quatro títulos mundiais no currículo. É assim que funciona. Mas não deveria.
Sobre o Autor
André Rocha é jornalista, carioca e blogueiro do UOL. Trabalhou também para Globoesporte.com, Lance, ESPN Brasil, Esporte Interativo e Editora Grande Área. Coautor dos livros “1981” e “É Tetra”. Acredita que futebol é mais que um jogo, mas o que acontece no campo é o que pauta todo o resto. Entender de tática e estratégia é (ou deveria ser) premissa, e não a diferença, para qualquer um que trabalha com o esporte. Contato: anunesrocha@gmail.com
Sobre o Blog
O blog se propõe a trazer análises e informações sobre futebol brasileiro e internacional, com enfoque na essência do jogo, mas também abrindo o leque para todas as abordagens possíveis sobre o esporte.