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Flamengo e Vasco mostram que todo dia é possível manchar a própria história

André Rocha

20/05/2020 03h11

O Clube de Regatas Vasco da Gama tem talvez a história de origem mais bela do futebol brasileiro. Clube popular em um esporte de elite. Um dos primeiros a aceitar negros praticando o esporte no país. Construiu São Januário com a ajuda da torcida.

Um passado belíssimo que é resgatado agora como praticamente o único motivo de orgulho em uma instituição esfacelada por seguidas gestões irresponsáveis e uma turbulência política que parece não ter fim, assim como o fundo do poço nas finanças.

Mas durante décadas o Vasco girou em torno de uma elite branca, de origem portuguesa. Conservadora e que arrotava preconceitos nas muitas reuniões na Sede Náutica, situada na Lagoa Rodrigo de Freitas, que definiam o futuro do clube. Também do futebol, com os abastados beneméritos ajudando a contratar jogadores.

O desprezo de muitos deles aos pobres, favelados,negros, desdentados e iletrados era exposto para espezinhar um rival de origem oposta. Clube criado na zona sul carioca, também com origem no remo. O departamento de futebol surgiu de uma dissidência do Fluminense, outro clube elitizado.

Mas o Clube de Regatas do Flamengo ganhou popularidade ao longo de seus quase 125 anos de existência. Um pouco depois da lendária eleição do Jornal do Brasil em 1927 que foi fraudada por sócios do clube rubro-negro para que este superasse o Vasco em votos e ganhasse o título de time mais popular da cidade. Por conta de ações de integração da instituição com sua gente e do inquestionável carisma da camisa em vermelho e preto. Crescimento em todas as classes sociais, mas especificamente nas mais baixas.

Também com uma boa ajuda midiática. Desde Mário Filho, Ary Barroso até Walter Clark, homem forte da Globo de 1966 a 1977 que saiu para ser vice-presidente do Flamengo na gestão Márcio Braga. Impossível negar que os laços entre clube e emissora ficaram mais fortes, também pela qualidade e carisma da geração vencedora no período. Liderada por Zico, um filho de um modesto alfaiate português que nasceu no subúrbio carioca, e Junior, nascido na Paraíba.

Seja como for, a aura popular seguiu com o time que sempre foi o de maior torcida do país e nunca teve esse status realmente ameaçado. Mas a tão sonhada reestruturação financeira a partir de 2013 trouxe um efeito colateral: o retorno de uma postura elitista, afastando os mais pobres do clube com uma política de preços de ingressos e do programa de sócio-torcedor praticamente inviável na gestão Bandeira de Mello.

Melhorou um pouco com a chegada de Landim ao poder, porém com falhas graves no trato humano. Desde aa questão do incêndio no Ninho do Urubu que vitimou dez menores, passando pela polêmica da premiação aos funcionários mais humildes dos títulos brasileiro e da Libertadores.

Agora forçando a volta do futebol em meio a uma pandemia. Sem contar os 62 funcionário demitidos depois de anunciar que seria capaz de suportar três meses em atividades. Não durou 45 dias. Assim como as ações positivas nos últimos dias, especialmente em relação aos ambulantes do Maracanã, não resistiram muito tempo. Foram apenas reposicionamento de marca. Algo estratégico,nada espontâneo. Como já disto neste blog, lidar com gente não é a praia desta diretoria.

O Vasco também demitiu e cortou custos. Sem contar os atrasos absurdos no pagamento de salários. Mas segue colocando em qualquer slogan a bela história de inclusão e democracia. Mesmo tendo à frente do futebol durante anos uma figura truculenta e autoritária como Eurico Miranda,falecido em 2019. E nas últimas eleições desrespeitando o voto dos sócios e levando ao poder o médico Alexandre Campello.

Sim, Campello é médico. Mas também quer a volta imediata do futebol. E foi com Landim tratar da questão com o presidente da república. Encontro em Brasília, sem máscaras nem cuidados para evitar contaminação da Covid-19. Também sem respeito aos milhares de mortos pelo país. Uma questão que está acima de qualquer debate político. Vidas que se vão. Pessoas com histórias e entes queridos que choram a partida. Mais de mil nas últimas 24 horas. Quase 18 mil no total, sem contar a subnotificação em um país que não investe pesado na testagem.

Não são números, ou um problema a ser evitado. Seja para recuperar receitas, no caso dos clubes, ou pensando em preservar capital político e transferir responsabilidades por mortes e pela inevitável crise econômica sem precedentes, que parece ser a intenção de Bolsonaro. Querem voltar à vida normal, mas já está provado e comprovado que não adianta reabrir comércio se as pessoas estão com medo de sair de casa.

Flamengo e Vasco, rivais com origens e trajetórias bem diferentes que se cruzam sempre e eventualmente invertem os caminhos, se uniram para mostrar que todo dia a história está sendo escrita. E pode ser muito manchada, de acordo com as palavras e gestos de seus representantes.

A ida a Brasília encontrar Bolsonaro será difícil de esquecer. E a cobrança pela atitude vergonhosa e indigna não vai demorar a chegar. Porque nem todo torcedor é gado. Longe disso.

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Sobre o Autor

André Rocha é jornalista, carioca e blogueiro do UOL. Trabalhou também para Globoesporte.com, Lance, ESPN Brasil, Esporte Interativo e Editora Grande Área. Coautor dos livros “1981” e “É Tetra”. Acredita que futebol é mais que um jogo, mas o que acontece no campo é o que pauta todo o resto. Entender de tática e estratégia é (ou deveria ser) premissa, e não a diferença, para qualquer um que trabalha com o esporte. Contato: anunesrocha@gmail.com

Sobre o Blog

O blog se propõe a trazer análises e informações sobre futebol brasileiro e internacional, com enfoque na essência do jogo, mas também abrindo o leque para todas as abordagens possíveis sobre o esporte.